terça-feira, 31 de janeiro de 2012

SEMPRE À MINHA FRENTE

Veio ter comigo
num dia
algures no passado
um pensamento
feito pessoa.
Trazia nele incorporado
todo o momento
de um futuro pensado.
À minha frente, ali
imóvel ficou
querendo penetrar
a minha mente.
E quando
simplesmente o questionei:
"Então, ... onde está o presente?"
para todo o sempre
à minha frente
sempre à minha frente
se desfez.
CARLOS SOUSA RAMOS (1956) - (Inédito)

segunda-feira, 30 de janeiro de 2012

HOMENAGEM A CESÁRIO VERDE

Aos pés do burro que olhava para o mar
depois do bolo-rei comeram-se sardinhas
com as sardinhas um pouco de goiabada
e depois do pudim, para um último cigarro
um feijão branco em sangue e rolas cozidas

Pouco depois cada qual procurou
com cada um o poente que convinha.
Chegou a noite e foram todos para casa ler Cesário Verde
que ainda há passeios ainda poetas cá no pais!

MÁRIO CESARINY - Pena Capital

domingo, 29 de janeiro de 2012

... o espírito das falésias...

NA LONGÍNQUA fraga faz o albatroz o ninho.
Uma asa vacila nos becos da tua cegueira.
Como pássaro de cinzas assim voas, demandas o espírito das
falésias.
A tua calma faz-se de linho, éter,
buganvílias mortais.
JOSÉ AGOSTINHO BAPTISTA (1948) - Biografia

sábado, 28 de janeiro de 2012

OFÍCIO

Os poemas que não fiz não os fiz porque estava
dando ao meu corpo aquela espécie de alma
que não pôde a poesia nunca dar-lhe

Os poemas que fiz só os fiz porque estava
pedindo ao corpo aquela espécie de alma
que somente a poesia pode dar-lhe

Assim devolve o corpo a poesia
que se confunde com o duro sopro
de quem está vivo e às vezes não respira.
GASTÃO CRUZ (1941) - Escarpa

sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

APOLO PARA NEPTUNO

Apolo disse a Neptuno:
    <<Vem ver, beberei o mar!>>
Mas este riu importuno
    Qual rapaz e, a brincar:
<<A terra beberias>>, retorquiu,
   <<Se pudesses, até à infinidade>>.
E o poeta, a quem o símbolo atingiu,
   Entendeu sua ansiedade.

ALEXANDER SEARCH (FERNANDO PESSOA) (1888 - 1935) - Poesia (edição e tradução de Luísa Freire)

quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

A ESCRITA...

A ESCRITA é a minha primeira morada de silêncio
a segunda irrompe do corpo movendo-se por trás das palavras
extensas praias vazias onde o mar nunca chegou
deserto onde os dedos murmuram o último crime
escrever-te continuamente... areia e mais areia
construindo no sangue altíssimas paredes de nada

esta paixão pelos objectos que guardaste
esta pele-memória exalando não sei que desastre
a língua de limos

espalhávamos sementes de cicuta pelo nevoeiro dos sonhos
as manhãs chegavam como um gemido estelar
e eu perseguia teu rastro de esperma à beira-mar

outros corpos de salsugem atravessam o silêncio
desta morada erguida na precária saliva do crepúsculo

AL BERTO (1948 - 1997) Vigílias (selecção e prólogo de José Agostinho Baptista)

quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

RAÍZES E FOLHAS SÓS

Raízes e folhas sós são estas,
Perfumes dos bosques desabitados e das margens dos lagos,
             perfumes para homens e as mulheres,
Azedas e cravos de amor, dedos que se retorcem e apertam
             mais do que as vinhas,
Fluxos da garganta dos pássaros ocultos na folhagem das
            árvores quando o sol nasce,
Brisas da terra e do amor que partem das praias vivas para
            vós, sobre o mar vivo para vós, ó marineiros!
Morangos com gelo e frescos ramos do terceiro mês para os
            jovens que vagueiam pelos campos quando o Inverno
            já se retira,
Corolas de amor perante ti e dentro de ti sejas tu quem fores,
Corolas que se hão-de abrir à maneira antiga,
Se lhes trouxeres o calor do sol, abrir-se-ão, adquirindo
            forma, cor, perfume para ti,
Se te transformares em alimento e humidade elas transformar-
           -se-ão em flores, altos ramos e árvores.

WALT WHITMAN (1819 - 1892) - Folhas de Erva (selecção e tradução de José Agostinho Baptista)

terça-feira, 24 de janeiro de 2012

Entre cantares...

ENTRE cantares (solidários, do povo)
e discursos exacerbados de políticos
a terra trabalha o seu fermento
lêveda ainda das bocas
colectivas.
Cada semana absorve-se e resolve-se
nas marés vivas dum corpo facetado.
Os homens de teatro initam os tribunos
e as noções de equipamento
estendem-se à arte dos trágicos.
O sexo, dizes, não se determina.
Antas do Senso
Visconti declarou
a terra toda que trabalha
treme.
Pasolini foi assassinado pelos seus próprios
mitos.
Não era tempo ainda da mão solidária
figurar entre os ciclones da Roda que desanda
inexoravelmente.
sobre o campo dos mártires sem causa.
Virgens de uma razão alucinada
os seus heróis dançavam por entre uma flora
incandescente a meio termo do néon
a um passo da vida pitoresca.
As telas de cinema só se compadecem
com a maquinaria hirsuta e caricatural
dos enormes charutos do acadenismo
e das cosmopolitas capitais de Falo.
Esse jogo, jogava camuflado.
Nos seus trabalhos diários, a terra
continua a tremer por cima dos seus órfãos.
Proletários do sexo e de todo o mundo
uni-vos.
ARMADO SILVA CARVALHO (1938) - O que Foi Passado a LImpo

segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

DOCES lembranças...

DOCES lembranças da passada glória,
Que me tirou Fortuna roubadoura,
Deixai-me repousar em paz uma hora,
Que comigo ganhais pouca vitória.

Impressa tenho na alma larga história
Deste passado bem que nunca fora;
Ou fora, e não passara; mas já agora
Em mim não pode haver mais que a memória.

Vivo em lembranças, morro de esquecido,
De quem sempre devera ser lembrado,
Se lhe lembrara estado tão contente.

Oh, quem tornar pudera a ser nascido!
Soubera-me lograr do bem passado,
Se conhecer soubera o mal presente.

LUÍS DE CAMÕES (1524? - 1580) - Sonetos de Luís de Camões (escolhidos por Eugénio de Andrade)

domingo, 22 de janeiro de 2012

CRISE: UMA IDEIA

CRISE: UMA IDEIA

Algo
se move, furtivo
no meio de urbe fossilizada
tentando derrubar a ideia
já de si imobilizada
de acto punitivo.

Há uma lágrima
no rosto da ideia
e um sorriso
na ameia do castelo
do novo desconhecido.

Se levanta a ideia
se esforça o furtivo
igualitárias não são as perdas
e deficitários vão ficando os desejos.

Corre o tempo
e o mal se instala
e demora a aparecer momento
de euforia
no sentido do furtivo.

Se chora, se lamenta,
já há “gente”
que não aguenta
e outra que se abastece
na penúria
de quem falece.

E, sem se dar conta
se encarrega o tempo
de mudar a direcção
do vento
e o furtivo se abstém
e a ideia, ás gargalhadas
se mantém.

Como tal desfazer?


CARLOS SOUSA RAMOS (1956) - inédito

sábado, 21 de janeiro de 2012

"TALVEZ UM POEMA POR DIA" será o registo de um poema diferente todos os dias, a fim de ser partilhado. O lerá quem gostar de poesia. Dele gostará quem dele gostar...

A quem interessar os poemas publicados nesta aventura desde o dia 01.01.2012 até à presente data, basta ir aqui: LINK.