quinta-feira, 14 de maio de 2015

[NO DESCARREGAR]

No descarregar de um olhar
se perfila o fim de um horizonte
vazio
conceito de uma utopia desgarrada
de efeito sem hipótese
indefinida tese
e demonstração infinita..

A mente que tal olhar
controla, também ela
de vazios
abundantemente cheia
quieta se perfila
estática se solidifica
e o horizonte não alcança.

E o ser, andante
portador de tais desvios
se encurrilha
sobre si se enrosca
e, sem dar conta,
falece.

E o mundo
que segue em frente
em direcção ao horizonte
envelhece
e apodrece.

[CARLOS SOUSA RAMOS]

quarta-feira, 13 de maio de 2015

E UMA PAIXÃO

visita-me enquanto não envelheço
toma estas palavras cheias de medo e surpreende-me
com teu rosto de Modigliani suicidado

tenho uma varanda ampla cheia de malvas
e o marulhar das noites povoadas de peixes-voadores
vem

ver-me antes que a bruma contamine os alicerces
as pedras nacaradas deste vulcão a lava de desejo
subindo à boca sulfurosa dos espelhos
vem

antes que desperte em mim o grito
dalguma terna Jeanne Hébuterne a paixão
derrama-a quando na tua ausência se prende às veias
prontas a esvaziarem-se do rubro ouro

perco-te no sono das marítimas paisagens
estas feridas de barro e quartzo
os olhos escancarados para a infindável água
vem

com teu sabor de açúcar queimado em redor da noite
sonhar perto do coração que não sabe como tocar-te

[AL BERTO (1948 – 1997)]
(O Medo)

(in Poemário Assírio & Alvim 2014)

terça-feira, 12 de maio de 2015

AS ÁRVORES

Pois nós somos como troncos de árvore na neve. Temos a impressão de que assentam sobre ela, e que com um pequeno empurrão seríamos capazes de os deslocar. Não, não somos capazes, porque eles estão firmemente presos à terra. Mas – quem diria? – até isso é ilusório.

[FRANZ KAFKA (1883 – 1924)]
(Parábolas e Fragmentos)
(selecção, tradução e prefácio de João Barrento)

(in Poemário Assírio & Alvim 2014)

segunda-feira, 11 de maio de 2015

POEMA QUASE EPITÁFIO

Violentamente só
desfeito em louco
- nem um gato lunar
te arranha um pouco

Morreram-te na família
irmão mais velhos
Restam retratos de vidro
e espelhos

Entre as fêmeas bendita
não te quis
As outras matastes
(nem há sangue que te baste)

O chão do teu país
deu-te água e uma raiz
muitas pedras nas prisões

- Senhor demónio dos sós
quando ele morrer
onde o pões?

[LUIZA NETO JORGE (1939 - 1989)]
[Poesia (1960 - 1989)]
(organização e prefácio de Fernando Cabral Martins)
(in Poemário Assírio & Alvim 2014)

domingo, 10 de maio de 2015

[A DISTÂNCIA]

A distância é cava
senão cova   Escava
Os pais vigiam
dentro de um veio
no seio da terra

E os avós são reis
por detrás de um vidro
Do açúcar vem-lhes
a textura doce

mais antigos
mortos do que nós
mais vivos mais sós

como se fosse
um acidente
o pó

[LUIZA NETO JORGE (1939 - 1989)]
(Poesia)
(in Poemário Assírio & Alvim 2013)

sábado, 9 de maio de 2015

[ÀS VEZES]

Às vezes, em dias de luz perfeita e exacta,
Em que as cousas têm toda a realidade que podem ter,
Pergunto a mim-próprio devagar
Porque sequer atribuo eu
Beleza às cousas.

Uma flor acaso tem beleza?
Tem beleza acaso um fruto?
Não: têm cor e forma
E existência apenas.
A beleza é o nome de qualquer cousa que não existe
Que eu dou às cousas em troca do agrado que me dão.
Não significa nada.
Então porque digo eu das cousas: são belas?

Sim, mesmo a mim, que vivo só de viver,
Invisíveis, vêm ter comigo as mentiras dos homens
Perante as cousas,
Perante as cousas que simplesmente existem.

Que difícil ser próprio e não ver senão o visível?

[ALBERTO CAEIRO (FERNANDO PESSOA)]
(1888 – 1935)
(Poesia)
(edição de Fernando Cabral Martins e de Richard Zenith)

(in Poemário Assírio & Alvim 2013)

sexta-feira, 8 de maio de 2015

[NAS MADRUGADAS]

Nas madrugadas de segunda-feira
tinhas de regressar não sabíamos bem
a que fracção do tempo porque tudo se sobrepunha
e éramos forçados a deter
o instante não por ser
belo, apenas por ser água
onde nunca ninguém duas vezes entraria

[GASTÃO CRUZ (1941)]
(Fogo)
(in Poemário Assírio & Alvim 2014)

quinta-feira, 7 de maio de 2015

T. DE PASCOAES

Não digo que a escuridão seja um resíduo cromático
do poente. Coloco o nada no horizonte a órbita
da Lira. A noite é uma vala crematória
onde está sepulta e incolor a Antiguidade.

Parei no pórtico Aristóteles poisara as aves
numa uva. Eu bendisse o estilo e dissuadi
o crente imaginário que respondera ao eco.
Comparo os símbolos dos poetas do Orfeu
                           como os da alquimia.

Todos os que haviam descrito o inferno se exaltaram
Pascoaes não fora o último emissário
de que por detrás das colunas fictícias de uma noite
fica nítido o passado memorável para o futuro.

Anoto a noite com o mito de que o nocturno
é um idioma. Vi cada árvore dissolver as linhas
de incisão o cume engrandecer a curva
o Regresso às crostas do pó estrelas cristalinas.

[FIAMA HASSE PAIS BRANDÃO (1939 - 2007)]
(Obra Breve)
(in Poemário Assírio & Alvim 2013)

quarta-feira, 6 de maio de 2015

INSÓNIA

Sai um homem
para fora de si mesmo
e empurra o seu poema
par as páginas da noite

levanta-se da cama
e põe os polegares
a soletrar o branco
que julga nas paredes

começa a poesia anémica da pele
a derrotar os mitos
e as coisas mais difusas parecem-lhe
formigas no solo da confusão

o hálito dos velhos despega-se
da roupa e um mapa adoentado
parece-lh um filme que vai
roçar-lhe os dedos e mutilar a noite.

[ARMANDO SILVA CARVALHO (1938)]
(O que Foi Passado a Limpo
(in Poemárui Assírio & Alvim 2013)

terça-feira, 5 de maio de 2015

[DISSE UM ANCIÃO]

Disse um ancião:
<<Quando falares,, fala como um homem livre, não como um escravo>>.


[in DITOS E FEITOS DOS PADRES DO DESERTO]
(organização de Cristina Campo e Piero Draghi, tradução de Armando Silva Carvalho)
(in Poemário Assírio & Alvim 2014)

segunda-feira, 4 de maio de 2015

[PERGUNTO]

Pergunto se o vento
irá abrir algum trilho
na erva do meu jardim
para que alguém possa vir
ainda hoje visitar-me.

[IZUMI SHIKIBU (974? - 1034?)]
(in O Japão no Feminino I - Tanka - Séculos IX a XI)
(organização e versão portuguesa de Luísa Freire)
(in Poemário Assírio & Alvim 2014)

domingo, 3 de maio de 2015

DESINFERNO II

Caísse a montanha e do oiro o brilho
O meigo jardim abolisse a flor
A mãe desmoesse as carnes do filho
Por botão de vídeo se fizesse amor

O livro morresse, a obra parasse
Soasse a granizo o que era alegria
A porta do ar se calafetasse
Que eu de amor apenas ressuscitaria.

[LUIZA NETO JORGE (1939 - 1989)]
[Poesia (1960-1989)]
(organização e prefácio de Fernando Cabral Martins)
(in Poemário Assírio & Alvim 2014)

sábado, 2 de maio de 2015

[TODOS OS ACASOS]

Todos os acasos da nossa vida são materiais de que podemos fazer o que quisermos. Quem possui muito espírito faz da sua vida – cada tomada de conhecimento, cada conhecimento seria para ele inteiramente espiritual – um primeiro membro de uma série infinita – o início de um romance infinito.

[NOVALIS (1772 – 1801)]
(Fragmentos de Novalis)
(selecção, tradução e desenhos de Rui Chafes)
(in Poemário Assírio & Alvim 2013)


sexta-feira, 1 de maio de 2015

[LIVRE ESCRITA ou PENSAMENTOS OBTUSOS ou APENAS DITOS] [2]

Atrás da sombra
do arco-íris
se encontra o caminho
onde os sonhos
conduzem a existência.


Quando o nada se faz
se desfaz
a vigência do tempo.


A palavra dita, escrita
no momento certo
por certo nos provoca.

[CARLOS SOUSA RAMOS]

quinta-feira, 30 de abril de 2015

JOANE

Nesse tempo, esperava crescer para molhar o pão no vinho. Jogava à bola na grande paragem e corria sempre, quase distraído. Não sabia ainda um nome para as coisas. Contava os passos e prendia o amigo. Subia às árvores, derrubava ninhos e fugia. Havia apenas o monte e esconderijos nos penedos. E a mina, escura.
Os dias passavam sem que me lembrasse. Uma espécie de sol me protegia.

                                                     Para os meus pais.

[MÁRIO RUI DE OLIVEIRA (1973)]
(O Vento da Noite)
(prefácio de Eugénio de Andrade)

(in Poemário Assírio & Alvim 2013)

quarta-feira, 29 de abril de 2015

[LIVRE ESCRITA ou PENSAMENTOS OBTUSOS ou APENAS DITOS]

Se há
uma omissão omissa
se há uma certa permissa
o mundo se espreguiça
de espanto.


Gesto tempestivo
derivado de um
conceito imprevisto, abre
possível momento festivo.


O sangue ferve
se pede calmaria
não há companhia
tudo se perde
e o desejo se suicida.

[Carlos Sousa Ramos]

segunda-feira, 27 de abril de 2015

SALOMÉ

Insónia rôxa. A luz a virgular-se em mêdo,
Luz morta de luar, mais Alma do que a lua…
Ela dança, ela range. A carne, álcool de nua,
Alastra-se pra mim num espasmo de segredo…

Tudo é capricho ao seu redor, em sombras fátuas…
O arôma endoideceu, upou-se em côr, quebrou…
Tenho frio… Alabastro!... A minh’Alma parou…
E o seu corpo resvala a projectar estátuas…

Ela chama-me em Íris. Nimba-se a perder-me,
Golfa-me os seios nus, ecôa-me em quebranto…
Timbres, elmos, punhais… A doida quer morrer-me;

Mordoura-se a chorar – há sexos no seu pranto…
Ergo-me em som, oscilo, e parto, e vou arder-me
Na bôca imperial que humanizou um Santo…

                   Lisboa 1913 – Novembro 3

[MÁRIO DE SÁ-CARNEIRO]

(in “Orpheu” - 1º número)

domingo, 26 de abril de 2015

[ESTADOS DE ESPÍRITO]

Tragam-me a farta palha
conjuntamente com o pardo feno
que é preciso alimentar o obsceno
de quem a torto e a direito
nos atrapalha.

Querendo não falecer de fastio
todos os dias o meu horizonte
amplio.

Fracassada a tentativa
esgotada a inspiração
resta, não uma ação punitiva
mas um acto de suada conspiração.

[CARLOS SOUSA RAMOS]

sábado, 25 de abril de 2015

[SOBRE O DESEJO]

O querer de um desejo
por vezes se confunde
com o desejo de um querer

O desejo se esgota
no fixar de um olhar.


[CARLOS SOUSA RAMOS]

sexta-feira, 24 de abril de 2015

[MORDISCAS-ME]

Mordicas-me os lábios
cão pássaro rapaz
(não quero que te vás embora
e sei que vais ter de te ir embora)
quero dormir contigo
com a tua mão
sobre o meu coração
para que saibas
os meus segredos
beliscas-me ao de leve
eu sei que não é um sonho
mas é como um sonho
para mim

[ADÍLIA LOPES (1960)]
[Dobra (Poesia Reunida 1983 - 2007)]
(in Poemário Assírio & Alvim 2013)

quinta-feira, 23 de abril de 2015

[DEUS É]

Deus é o existirmos e isto não ser tudo.

                                                    Bernardo Soares

[FERNANDO PESSOA (1888 - 1935)]
(Aforismos e Afins)
(edição e prefácio de Richard Zenith, tradução de Manuela Rocha)
(in Poemário Assírio & Alvim 2013)

quarta-feira, 22 de abril de 2015

[A CORAGEM]

A coragem que vence o medo tem mais elementos de grandeza que aquele que o não tem. Uma começa interiormente; outra é puramente exterior. A última faz frente ao perigo; a primeira faz frente, antes de tudo, ao próprio temor dentro da sua alma.

[FERNANDO PESSOA (1888 – 1935)]
(Aforismos e Afins)
(edição e prefácio de Richard Zenith, tradução de Manuela Rocha)
(in Poemário Assírio & Alvim 2014)


terça-feira, 21 de abril de 2015

[AS FLORES NASCEM]

As flores nascem, amadurecem, completam-se,
abrem as corolas.
- De dentro de ti saem as flores do canto;
derrama-las sobre os homens, sobre eles as esparzes;
tu és um cantor!
- Fruí do canto, todos vós,
fruí, dançai, entre as flores respira o canto;
e eu, cantor, respiro no meu canto!

[América, Aztecas]
(versão de Herberto Helder)
(in Poemário Assírio & Alvim 2014)

segunda-feira, 20 de abril de 2015

[ONDE TERÁ COMEÇADO]

Onde terá começado a metalização da fala?

uma porta em alvenaria dá acesso
à eira de misteriosos e profundos limos

onde terei esquecido a cicatriz azul da escrita?

uma flor invade os veios secos da pedra
incendeia-se antes de se diluir na poeira

onde terei dado de beber à melancolia da
há pistas estreitas de animal ferido pelas paredes memória?

o sangue transmutado em raríssimo metal
faz do coração e das veias a possível mina

onde vibrará a selvagem luminosidade dos pulsos?

dentro do sonho segui-las-emos ao amanhecer

onde se esconderá o diminuto rosto ainda vivo?

insondáveis são as catástrofes da alma
e da loucura que já não nos prende um ao outro

que destino nos revela a mão sem linha da vida?

escuto o bater do tempo sob as pálpebras
e o terrível som da máquina de escrever

         de <<Uma Existência de Papel>>: Os Dias Sem Ninguém, 1984/85

[AL BERTO (1948 – 1997)]
(Vigília)

(in Poemário Assírio & Alvim 2013)

domingo, 19 de abril de 2015

O PERFUME PRECIOSO (Lc 7,36-50)

Havia um vaso de perfume
em barro branco
e a mulher que se colocou de gatas
radiante por poder exibir a farta cabeleira
Mas ao quebrá-lo daquele modo aos pés do hóspede
misturou o nardo imprevistamente
com o cheiro de uma mulher que chora

O anfitrião especado observava, sem pronunciar um som
o mestre, porém, olhou-a com os seus olhos de cão meigo
a vagabundagem e a pobreza
eram direitos de quem entrou e saiu das trevas
para fazer da infelicidade um uso

Recordarei sempre aquele momento
perfeito fio de prumo
que indica o centro da terra

[JOSÉ TOLENTINO DE MENDONÇA (1965)]
(Estação Central)
(in Poemário Assírio & Alvim 2014)

sexta-feira, 17 de abril de 2015

ÁRVORE CINZENTA

No ribeiro quase seco
uma árvore
atormenta minha alma

creio que de lá

parte para anunciar a noite
o voo sonolento do noitibó

[MÁRIO RUI DE OLIVEIRA (1973)]
(Bairro Judaico)
(in Poemário Assírio & Alvim 2013)

quinta-feira, 16 de abril de 2015

A CHAVE

Deixo os mundos o das
palavras e o mundo
dos sinais que são os seres reais
confundirem-se
no meu presente dúbio procurando
para o poema um tema talvez desnecessário

Do meu tempo farão a chave procurada
a resposta que busco à confusão mortal
da língua que de ti e das coisas se afasta
Pedes a chave real para voltar à casa
e o nada
como a nuvem envolve a tua fala.

[GASTÃO CRUZ (1941)]
[Os Poemas (1960 - 2006)]
(in Poemário Assírio & Alvim 2013)

quarta-feira, 15 de abril de 2015

[DO CÓMICO]

Do cómico ao cósmico
fomos, viemos.
O pé do campeão
cortou a nossa meta.

[LUIZA NETO JORGE (1939 - 1989)]
(A Lume)
(in Poemário Assírio & Alvim 2013)

terça-feira, 14 de abril de 2015

PERIGO DE VIDA

É grande o risco da palavra no tempo
maior mesmo talvez que no mar
Eu fui à margem do dia despedir um amigo
e não houve no cais
iniciativa verbal que edificasse
uma só tenda para o nosso coração
Éramos peregrinos
que deixam a saudade de turistas
ausentes na rua de outono
Morríamos contra a curva dos dias
a morte rotativa e provisória

Tivesse a própria palavra lábios
e nenhum clima poderia
arrefecer-lhe o coração
Tivesse ela lábios e não seria
tão grave o risco no tempo e no mar

[RUY BELO (1933 – 1978)]
(Todos os Poemas)

(in Poemário Assírio & Alvim 2013)

domingo, 5 de abril de 2015

[À ESQUERDA)

À esquerda e a meia altura da folha colocada
na vertical, o artista desenhou um pulso
com a sua mão articulada, deitada aberta para trás.
Deixou-se ali à espera de algo que viria
nela poisar, apoiar-se, confiante, nela. E veio.
E agora está lá desde sempre: uma cabeça feminina
- firme e desenhada com a minúcia da ternura -
com aquele olhar
velado, em frente
que dá a ilusão de ser a ti que olha.

[MANUEL GUSMÃO (1945)]
(Pequeno Tratado das Figuras)
(in Poemário Assírio & Alvim 2014)

sábado, 4 de abril de 2015

[O SOL VAI ALTO]

O sol vai alto
é cedo
a aragem forte
limpo, o céu
correm os pensamentos
colam-se à mente
a alma se destrói
nada rejuvenesce
fóssil é o ciclo
a mudança não aparece
desfalece a vontade
se definha o corpo
não pára, o tempo
o dia, desaparece
chega a noite
negra é a cor
os desejos, pintados de breu
nada se realiza
o sonho desliza
alguém acorda
para bem de um angustiado ser.


[CARLOS SOUSA RAMOS – 04.04.2015]

sexta-feira, 3 de abril de 2015

[JÁ FLAMEJA]

Já flameja a melancia. A noite
cai mais densa. E tu regressas
um tanto triste ao meu ardor.

[SANDRO PENNA (1906 - 1977)]
(No Brando Rumor da Vida)
(tradução de Maria Jorge Vilar de Figueiredo)
(in Poemário Assírio & Alvim 2013)

quinta-feira, 2 de abril de 2015

[A MÚSICA]

  A música une, os costumes separam. Pela união origina-se a amizade dos homens entre si, pela separação a consideração de uns pelos outros. Quando a música alcança uma importância demasiada, há negligência. Quando os costumes predominam em demasia, quebra-se o apreço e surge o alheamento.

[HUGO VON HOFMANNSTHAL (1874 – 1929)]
(Livro dos Amigos)
(tradução e prefácio de José A. Palma Carlos)

(in Poemário Assírio & Alvim 2013)

quarta-feira, 1 de abril de 2015

A HERANÇA

Da última vez que morri (e, querida, morro
Tantas vezes quantas de ti me aparto)
Ainda que tenha sido há uma hora apenas,
E as horas dos amantes sejam uma eternidade,
Consigo recordar, que eu
        Disse algo, e concedi algo
Que, apesar de morto me fez voltar, e obrigou a ser
O meu próprio executor e herança.

Ouvi-me falar: <<Diz-lhe já
        Que eu>> (ou seja tu, não eu)
<<Me matou>>; e quando me senti morrer
Deliberei enviar o meu coração depois de ter partido.
Mas – infeliz! – não encontrei lá nenhum,
        Quando me abri e procurei no sítio onde se guardam.
Matou-me outra vez que eu, sempre sincero
Em vida, na minha última vontade te defraudasse.

Se bem que encontrei algo semelhante a um coração,
        Mas tinha cores e cantos.
        Não era bom, nem era mau,
Não era fiel a ninguém, e alguns o partilhavam.
O melhor que se podia arranjar por arte
        Parecia; por isso, triste por nossas perdas,
Pretendi mandar este coração em vez do meu.
Mas oh, nenhum homem o podia segurar, porque era o teu.

[JOHN DONNE (1572 – 1631)
(Poemas Eróticos)
(tradução de Helena Barbas)

(in Poemário Assírio & Alvim 2013)

terça-feira, 31 de março de 2015

[O POETA]

O Poeta precisamente só o será quando a sua imaginação for além da imaginação do Universo.

[ANTÓNIO MARIA LISBOA (1928 - 1953)]
(Poesia)
(in Poemário Assírio & Alvim 2014)

segunda-feira, 30 de março de 2015

A ÁRVORE DA VIDA

A Árvore da Vida é adornada de belas flores
E em seu redor perfilam-se as mais garbosas hostes.
A sua crista domina o espaço imenso
E as planuras do céu recebem os frutos maduros.

Na ramaria, em glória pousa um bando de
esplendorosas aves
E as aves entoam  cânticos de perfeita harmonia.
As folhas não secam e as flores não murcham
E antes crescem sua beleza e abundância.

Belo é o bando das aves que guarda a árvore
Luminosas as cores brilhando em milhares de penas.
Sem temor nem pecado em serena alegria
Por cada pena as aves cantam mil melodias.

[IRLANDÊS - AUTOR DESCONHECIDO ( FINAL DO SÉCULO X)]
( in O Grito do Gamo - poemas celtas da fé e do sagrado)
(tradução de José Domingos Morais)
(in Poemário Assírio & Alvim 2013)

domingo, 29 de março de 2015

PORTAS FECHADAS

As sombras repetem-se
e chegam trémulas
ao pé das cidades.
Ninguém quer abrir as portas
com medo da epidemia.

O sangue desce das montanhas
e interna-se nos hospitais.
Nos quartéis choram os cavalos
e não querem ouvir falar de guerra,
têm más recordações,
pensam nas pradarias
e nas suas companheiras de amor.
Os cavalos são ternos
e olham com dor para os torturados.

De noite ouvem os gemidos
e os seus cascos batem
para espantar os mortos.

Assim é agora a epidemia do sangue.
Sobre os ombros dos vinte anos
a morte cruel caminha e é estrondo,
chama ou cinza arrastada pelo vento.

[MATILDE ESPINOSA (1910 – 2008)]
[in Um País que Sonha – cem anos de poseis colombiana (1865 – 1964)]
(selecção e prólogo de Lauren Mendinueta, tradução de Nuno Júdice)

(in Poemário Assírio & Alvim 2014)

sábado, 28 de março de 2015

[O MILAGRE]

O milagre é a preguiça de Deus, ou, antes, a preguiça que Lhe atribuímos, inventando o milagre.
                                                                                          BERNARDO SOARES

[FERNANDO PESSOA (1888 - 1935)]
(Aforismos e Afins)
(edição e prefácio de Richard Zenith, tradução de Manuela Rocha)
(in Poemário Assírio & Alvim, 2014)

sexta-feira, 27 de março de 2015

[O HOMEM PERFEITO]

O Homem perfeito deve viver, por assim dizer, em diversos lugares e em vários Homens, simultaneamente – é necessário que lhe estejam constantemente presentes múltiplos acontecimentos e um círculo mais vasto. Assim se forma, então, a verdadeira e grandiosa presença do espírito – que faz do Homem um verdadeiro cidadão do mundo e o estimula e fortalece em cada momento da sua vida, através das mais benéficas associações e o coloca na clara disposição de uma actividade lúcida.

[NOVALIS (1772 - 1801)]
(Fragmentos de Novalis)
(selecção, tradução e desenhos de Rui Chafes)
(in Poemário Assírio & Alvim 2013)

quinta-feira, 26 de março de 2015

COMO COMEÇOU TUDO ISTO

Como começou tudo isto, e porque estou aqui
Neste balcão arqueado com a sua pintura castanha a desfazer-se?
Papegaai, Mezcal, Hennessey, Cerveza,
Duas escarradeiras viscosas, sem companhia a não ser o medo:
Medo da luz, da Primavera, do lamento
Das aves, e dos autocarros voando para longínquas paragens,
E dos estudantes que vão às corridas
E das raparigas que saltam com o vento nas suas caras,
Mas sem companhia, sem companhia a não ser o medo:
Medo da fonte que canta e de todas as flores
Que conhecem o sol e são meus inimigos.
E estar horas mortas?

[MALCOLM LOWRY (1909 - 1957)]
(As Cantinas e Outros Poemas de Álcool e do Mal)
(selecção e tradução de José Agostinho Baptista)
(in Poemário Assírio & Alvim 2013

quarta-feira, 25 de março de 2015

[cheirava mal]

cheirava mal, a morto, até me purificarem pelo fogo,
e alguém pegou nas cinzas e deitou-as na retrete e puxou o autoclismo,
requiescat in pace,
e eu não descanso em paz nas retretes terrestres,
a água puxaram-na talvez para inspirar o epitáfio,
como quem diz:
aqui vai mais um poeta antigo, já defunto, é certo, mas em vernáculo e
       tudo,
que Deus, ou o equívoco dos peixes, ou a ressaca,
o receba como ambrósia sutilíssima nas profundezas dos esgotos,
merda perpétua,
e fique enfim liberto do peso e agrura do seu nome:
vita nuova para este rouxinol dos desvãos do mundo,
passarão a quem aos poucos foi falhando o sopro
até a noite desfazer o canto,
errático canto e errado no coração da garganta,
canto que o trespassava pela metade das músicas
- e ao toque no autoclismo ascendia a golfada de merda enquanto
       as turvas águas últimas
se misturavam com as águas primeiras

[HERBERTO HELDER (1930 – 2015)]
(de Servidões, in Poemas Completos, porto Editora, 2014)

(publicado a 25.03.2015 no Jornal Público)

terça-feira, 24 de março de 2015

A UM HOMEM DO PASSADO

Estes são os tempos futuros que temia
o teu coração que mirrou sobre pedras,
que podes recear agora tão fundo,
onde não chegam as aflições nem as palavras duras?

Desceste em andamento, afinal era
tudo tão evitável como o resto.
Viraste-te para o outro lado e sumiram-se
da tua vida os bons e os maus momentos.

Tu ainda tinhas essa porta à mão.
(Aposto que a passaste com um vénia desdenhosa.)
Agora já não é possível morrer ou,
pelo menos, já não chega fechar os olhos.

[MANUEL ANTÓNIO PINA (1943 - 2012)]
(Todas as Palavras - poesia reunida (1974 - 2011))
(in Poemário Assírio & Alvim 2014)

segunda-feira, 23 de março de 2015

[MUITAS CANÇÕES]

Muitas canções começam no fim, em cidades
estranhas. Sei
que a felicidade dos meses é ao meio dia e a força
de um homem é ao meio
da vida pura. Mas são muitas
as canções que começam no fim.
É no fim que secamente falam do ardor
ao meio
da cidade e da existência que se volta
para si, de rosto - tremente
e verde de sua ilusão. Canções cada vez
mais no seu fim , tão secas voltadas
imenso para trás. Para onde
é todo o poder. Conheço
horríveis canções cor de coisas transtornadas.
Canções ainda repletas de peixes, flechas, dedos
agudos abertos em torno do sexo.
Começam no fim do seu pensamento.
São para morrer na véspera, com um lento
pavor no coração e o povo
atónito por todos os lados. Porque o povo
não sabe que um homem morre antes da sua
última canção.

[HERBERTO HELDER (1930)]
(Ofício Cantante)
(in Poemário Assírio & Alvim 2013)

domingo, 22 de março de 2015

[A NATUREZA]

A natureza
é a diferença entre a alma e Deus.


[FERNANDO PESSOA]
(Aforismos e Afins)
(edição e prefácio de Richard Zenith, tradução de Manuela Rocha)
(in Poemário Assírio & Alvim, 2013)

sábado, 21 de março de 2015

O DIA

O dia nasceu quente
como que a dizer
que talvez fosse possível fazer
algo com as palavras
que se perfilavam na mente
fruto do estado de ebulição
a que as ideias, à procura de uma criação,
sujeitas se encontravam.
O dia assim o exigia,
há muito, que muitos
a isso se dedicavam
e ele, qual vulcão sem tampa
sentia que mais dia menos dia
expeliria
através da pena conduzida
pela sua mão indecisa, algo
do qual não desdenharia.
Foi crescendo o dia
foi, a lava,
do seu acordado desejo vulcânico,
em crescendo,
subindo as paredes
que empacotavam o seu caminho,
até que, já exausto,
pois o que lhe saía
era de uma atroz tristeza,
querendo ele dar voz
à beleza que sentia,
rasgou os papéis
do seu caderno pautado
não sem antes gritar
…. maldito dia da poesia.

[Carlos Sousa Ramos_21.03.2015]


P.S.: Não vá alguém interpretar mal, este texto não é autobiográfico, não me sinto assim, triste, depressivo, como o poeta do poema, bem pelo contrário.