sexta-feira, 31 de agosto de 2012

ÍCONES ESCONDIDOS


Ícones escondidos
mostram-se ao relento.
Eles sabem que no cansaço da noite
não há naufrágio que não desvende o seu despojo.
(nem madrugadas que cheguem ao que se quer dos dias)
o que, por soberba, se criou).
Ícones são iguais:
morrem na praia.

Mas agora
remexidos
depois de bem imaginados os destroços
que ninguém os apedreje.

Na baixa-mar
ninguém os olhe de frente –
o seu olho arrancado e o outro tão transparente
pasto de novos predadores –

ninguém os apedreje
em rigor
nem nos olhos.

SÉRGIO GODINHO – o Sangue Por Um Fio

quinta-feira, 30 de agosto de 2012

OS MEDOS


       O medo quando nos empece, vem de longe; traz poeira da
via láctea, na túnica flutuante de sombras…

TEIXEIRA DE PASOAES (1877 – 1952) – Senhora Noite. Verbo Escuro
(apresentação de Mário Garcia)

quarta-feira, 29 de agosto de 2012

LISBOA, NOIVA DO TEJO


Sejamos mais sinceros.
Nem sempre o caldo (ainda que instantâneo)
nos aquece o corpo.
Nem mesmo a terna mão de plástico
Que nos ensaboa lentamente
o cérebro.
A máquina debruça-se no limiar
da alma. Perscruta. Indaga com copiosos
números os teus, meus, nossos
pequenos sentimentos domingueiros.
Alguém, sentado, no Cais das Colunas,
pesca um preservativo, uma embalagem,
um sonho.
Não. Não são estas as palavras de hoje.
E já os gregos tinham labirintos.
Os peixes róseos, a cantilena que sobe da lota,
o cheiro do mar – feno que te vem
à boca – campos de praia –
ainda nos encantam.
Por isso
entra no carro e acelera o choro.
Tens no porta-luvas um lenço de papel.
Assoa-te. E espera então a noite
em perfeito e desesperado
estado de limpeza.

ARMANDO SILVA DE CARVALHO (1938) – O que Foi Passado a Limpo

terça-feira, 28 de agosto de 2012

HOMENS QUE SÃO COMO LUGARES MAL SITUADOS


Homens que são como lugares mal situados
Homens que são como casas saqueadas
Que são como sítios fora dos mapas
Como pedras fora do chão
Como crianças órfãs
Homens sem fuso horário
Homens agitados sem bússola onde repousem

Homens que são como fronteiras invadidas
Que são como caminhos barricados
Homens que querem passar pelos atalhos sufocados
Homens sulfatados por todos os destinos
Desempregados das suas vidas

Homens que são como a negação das estratégias
Que são como os esconderijos dos contrabandistas
Homens encarcerados abrindo-se com facas

Homens que são como danos imparáveis
Homens que são sobreviventes vivos
Homens que são como sítios desviados
Do lugar.
DANIEL FARIA – Poesia (1971 – 1999)

segunda-feira, 27 de agosto de 2012

DO FAUSTO


Alta Montanha

Picos recortados, de penhascos agrestes.
Uma nuvem aproxima-se, encosta-se à parede rochosa
e desce sobre uma plataforma saliente, dividindo-se.

FAUSTO (saindo da nuvem):
Olhando a meus pés a mais funda das solidões,
Meditativo, toco a orla deste cume,
Abandonando a nuvem que me transportou
Suavemente, em dias claros, por terra e mar.
De mim se afasta aos poucos, sem se dissipar.
Sua massa compacta p’ra leste deriva,
Segue-lhe a rota, cheio de espanto, o meu olhar.
Divide-se em curso, ondeia, multiforme.
E ganha forma já! O olhar não me engana!
Majestosa, deitada em coxins de sol,
Gigantesca e divina forma de mulher.
Vejo-a! Parece-se com Juno, Leda, Helena,
Oferecendo-se, nobre e bela, ao meu olhar.
Ah, já se afasta! Informe, vasta, acastelada,
Repousa a leste, como um glaciar ao longe,
Reflectindo a grandeza de dias fugazes.

[…]
JOHANN WOLFGANG GOETHE (1749 – 1832) – O Jogo das Nuvens
(selecção, tradução, prefácio e notas de João Barrento)