quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

NEVOEIRO...

Nevoeiro que traz encobrimento
desperta temor                                    
a novo conhecimento.

Suave nevoeiro
que através da sua
malha larga
traz horizonte que alarga.
CARLOS SOUSA RAMOS (1956) - Curto Quotidiano

terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

"ENNUI" URBANO

As varandas altas
contra a abjeção
do ruído da rua,
o movimento imparável
e sem sentido
e a sujidade de tudo.

A vida como um absurdo

de gestos mundanos,
de rotinas estúpidas
e a solidão imperial
da consciência desfeita,
imersa na irracionalidade.

Seria capaz de gostar

do bando de pombos
que atravessou a rua
e vai pousar na porcaria.

Da vertigem das varandas,

poderia gostar do estrondo
da queda veloz, da vida como
um sopro, da ausência de vontade.

Desço para entrar no automóvel

e perder-me na angústia do trânsito,
sem saber para onde ir, nem o que fazer

JOSÉ MANUEL FERREIRA LOPES (1955) - O Famoso Caderno

segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

UMA MANHÃ

Olhares trocados, fugidios
com medo de serem devorados.
Pele branca, transfigurada
pelo que, com o que se sente
agarrado se fica.


[E] o tempo passa
[E] o computador, pousado na mesa
[E] ao lado um café
[E] os gestos, incertos
[E] os dedos, frenéticos
[E] no teclado, o que se escreve?


O olhar ou o seu desejar?

Carlos Sousa Ramos (1956) - O con(c)luio/r da palavra

domingo, 26 de fevereiro de 2012

OPERÁRIOS

Oh esta tarde quente de Fevereiro!
O Suão inoportuno veio reavivar as nossas lembranças
de indigentes absurdos, a nossa jovem miséria.

Henrika trazia uma saia de algodão aos quadrados brancos e castanhos que deviam ser moda no século passado, um barrete engalanado e um lenço de seda. Era mais triste que um luto. Dávamos uma volta pelos arredores. O tempo estava coberto e este vento Suão libertava todos os maus cheiros dos jardins dizimados e dos campos seco

Isto cansava-me mais a mim do que à minha mulher. Numa poça de água cavada pelas inundações do mês precedente, num atalho bastante elevado, ela fez-me ver minúsculos peixes.

A cidade, com o seu fumo e o ruído das suas oficinas, seguia-nos de longe, todo o caminho. Oh o outro mundo, a casa abençoada pelo céu e pelas sombras! O Suão recordava-me os miseráveis incidentes da minha infância, os meus desesperos de estio, a horrível quantidade de força e de ciência que a sorte arredou sempre de mim. Não! Não passaremos o estio nesta terra avara onde seremos sempre noivos órfãos. Quero que este braço endurecido deixe de arrastar uma imagem querida.

JEAN ARTHUR RIMBAUD (1854 – 1891) Iluminação – uma Cerveja no Inferno (tradução de Mário Cesariny)

sábado, 25 de fevereiro de 2012

VÁRIA LITERATURA

Dia de festa, existir simplesmente
ter confiança em tudo, ó mundo minha mãe,
lareira prometida nunca alumiada
e tantos gestos empilhados  e tijolos
E sobre tudo o resto o vão bocejo e não valer a pena

Ser erva entre o milho e verde vítima do vento
ceifar-nos rente algum olhar de esquecimento
A morte ainda é uma forma eficaz de adormecer
e a virtude é o caminho para quem
não tem outro remédio nesta vida
Mulher como melhor morrer nascer cantar
Itália onde tombar como em qualquer lugar
chorar o mínimo cadáver que passar
e não desperdiçar os dedos pelas coisas
Fazer de um jardim quanta vida se quer
ser o maior dos responsáveis por
- eis algumas vantagens de propriedade horizontal

RUY BELO (1933 – 1978) Todos os Poemas

sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

II

Que de fruta! E que fresca e temporã,
Nas duas boas quintas bem muradas,
Em que sol, nos talhões e nas latadas,
Bate de chapa, logo de manhã!

O laranjal de folhas negrejantes
(Porque os terrenos são resvaladiços)
Desce em socalcos todos os maciços,
Como uma escadaria de gigantes.

Das courelas, que criam cereais,
De que os donos – ainda! – pagam foros,
Dividem-no fechados pitosporos,
Abrigos de raízes verticais.

Ao meio, a casaria branca assenta
À beira da calçada, que divide
Os escuros pomares de pevide,
Da vinha, numa encosta soalhenta!

Entretanto, não há maior prazer
Do que, na placidez das duas horas,
Ouvir e ver, entre o chiar das noras,
No largo tanque as bicas a correr!

[…]
CESÁRIO VERDE (1855 – 1886) O Livro de Cesário Verde (posfácio e fixação do texto de António Barahona)

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

CANTO AO EU

Canto o Eu, a simples pessoa em si,
Mas pronuncio a palavra democrática, a palavra massas.

Da cabeça aos pés canto a fisiologia,
Nem a fisionomia nem o cérebro por si sós merecem a Musa,
Digo que a Forma completa a merece mais,
Canto a Fêmea e o Macho por igual.
Imenso de paixão, pulso e poder,
Alegre, concebido para a acção mais livre sob a lei divina,
Canto o Homem Moderno.

WALT WHITMAN (1819 – 1892) - Folhas de Erva (selecção e tradução de José Agostinho Baptista)

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

A ILHA

A ilha era deserta e o mar com medo
de tanta solidão já te sonhava:
ia em vento chamar-te para longe
e longamente em espuma te esperava.

À cinza dos rochedos atirava
na grande madrugada adormecida,
já saudosos de ti, os braços de água,
sem ter acontecido a tua vida.

Sim, meu amor, antes de Zarco vir
provar o sumo e o travo à solidão,
no litoral de pedra pressentida
o mar imaginava esta canção.

E as lúcidas gaivotas desse tempo
talhavam como um voo o teu amor:
o início de lava e sal que deixa
(talvez) neste poema algum esplendor.

CARLOS DE OLIVEIRA (1921 – 1981) Trabalho Poético

terça-feira, 21 de fevereiro de 2012

PALÁCIO DE GELO

Os charcos formavam um dominó decapitado de edifícios, dos quais um era o torreão, que me contaram na infância, de uma só janela, tão alta como os olhos da mãe quando se inclinam sobre o berço.
    Perto da janela pende um enforcado que se balanceia sobre o abismo de eternidade, uivando de espaço. SOU EU. É o meu esqueleto de que já não restam senão os olhos. Tão depressa riem como se me entortam, ou VÃO COMER UMA MIGALHA DE PÃO NO INTERIOR DO MEU CÉREBRO. Abre-se a janela e aparece uma dama a pôr polisoir nas unhas. Quando as vê suficientemente afiadas arranca-me os olhos e atira-os para a rua. Ficam-me as órbitas sozinhas, sem olhar, sem mar, sem desejos, sem frangos, sem nada.
      Uma enfermeira vem sentar-se ao meu lado na mesa do café. Desdobra um jornal de 1856 e lê com voz emocionada:
   <<Quando os soldados de Napoleão entraram em Saragoça, na VIL SARAGOÇA, só encontraram o vento pelas ruas desertas. Só num charco grasnavam os olhos de Luis Bunuel. Os soldados de Napoleão acabaram-nos à baioneta.>>

LUIS BUNUEL (1900 – 1983) Os Poemas de Luis Bunuel (organização d J.F.Aranda)(tradução de Mário Cesariny)

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2012

NÃO É UMA COISA SÓ...

Não é uma coisa só.
São muitas coisas nuas.

Não é o desabar de uma casa.
É percorrer os seus escombros.

Não é aguardar por um filho.
É voltar a sê-lo.

Não é penetrar em ti.
É sair de mim.

Não é pedir-te que faças.
É fazer-te.

Não é dormir lado a lado.
É estar jacente de mãos dadas.

Não é ouvir vento e chuva.
É franquear-lhes a cama.

E relâmpago que pela terra se funde.

ANTÓNIO OSÓRIO (1933) – A luz fraterna – poesia reunida (1965-2009)

domingo, 19 de fevereiro de 2012

[ESPARSA]

Duas coisas não atinjo eu
pois a mente não as quer:
o que não vos conheceu,
sem ver-vos, - pra que nasceu?,
quem vos viu, - pra quê viver?
Ambas penas padeci,
causadas por bem querer-vos,
mas maior mágoa senti
nesta angústia só por ver-vos
que na morte porque vos vi.

LOPE DE SOSA (? - ?) in Antologia da Poesia Espanhola das Origens ao Século XIX
(selecção, organização, tradução, posfácio e notas de José Bento)

sábado, 18 de fevereiro de 2012

FÁBULA

Os animais interrompem sua marcha
julgam ouvir de repente um sino
debaixo d’água
por isso se estendem

muito longe, em autoras e ermos
quando os cremos ao nosso alcance
a atenção deles perfura
a fábula intransponível

nesse momento não vêem
dir-se-ia que nem adivinham
o fuzil da caça
os teus dedos azuis

JOSÉ TOLENTINO DE MENDONÇA (1965) – O Viajante Sem Sono

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012

A FACA NEGRA

A faca não lhe cortou o fogo
Hão-de escrever, como os gregos, quando as entranhas
Se me abrirem num buraco enorme,
Ébrio de infinito.

Enquanto alinhavei os versos
Numa métrica fiel aos mestres do passado,
E me condoía com a lírica doce
Do João, o de Deus,
A razão dominava tirana em busca de palavras púberes,
Pilares da força comum na matéria
E no espírito, na aprofundação das ideias-mães
Pharoes da minha fronte, numa montanha
Sem luzes.

Terei o corpo torcido por sonhos infelizes
Quando os tinha,
Que o meu sonho era de insónias.
Vou sendo carcomido por exemplos menores
De resíduos históricos, devassado
Pelos vermes da inércia, devolvido
Em esplendor à procedência
Fúnebre.
ARMANDO SILVA CARVALHO (1938) – Anthero, Areia E Água

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

A palavra

A PALAVRA é um retrato feito a sons.

TEIXEIRA DE PASCOAES (1877 - 1952) Senhora da Noite. Verbo escuro (apresentação de Mário Garcia)

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

O AMOR

AMOR - O que é o amor? Um grande coração que dói
E nervosas mãos; e silêncios; e longo desespero.
Vida - o que é a vida? Um pântano deserto
Onde chega o amor e de onde parte o amor.

ROBERT LOUIS STEVENSON (1850 - 1894) Poemas (selecção e tradução de José Agostinho Baptista)