sábado, 31 de janeiro de 2015

COCSET, 2002

Não te esqueças de Casals,
do perfume sombrio das laranjeiras,
dos primeiros versos de Eugénio
ou daquele tio que desiludiste
ao dizeres que não era de mulher
o corpo que esses versos
mais amavam. Não te esqueças.

Tão depressa a morte cairá
sobre este poema. Recorda,
porém, a buganvília que abraçava
a varanda da casa e os amigos
todos que lá iam. Volta a sentir
na tua mão o peso das mãos
que um dia tiveram a destreza
do arco sobre as cordas
à mercê de uma música sem saída.

Não te esqueças.
Ou melhor: esquece-te.

[MANUEL DE FREITAS (1972)]
(A Última Porta - antologia)
(selecção e posfácio de José Miguel Silva)
(in Poemário Assírio & Alvim 2013)

sexta-feira, 30 de janeiro de 2015

QUEM É...

Quem é o selvagem efusivo e cordial?
Está à espera da civilização ou ultrapassou-a, fazendo-a sua?

Será do Sudoeste, criado ao ar livre? Canadiano?
Das terras do Mississípi? De Iowa, Oregon, Califórnia?
Das montanhas? Das pradarias, dos bosques? Ou virá dos
            mares?
Aonde quer que vá, homens e mulheres aceitam-no e
           desejam-no.
Desejam que goste deles, que os toque, que lhes fale, que
           fique com eles.
Conduta sem lei como as flores de neve, palavras simples
          como a erva, cabelo despenteado, riso e inginuidade,
Passos lentos, traços comuns, modos comuns, e comuns
          exalações,
Descendo em novas formas das pontas dos dedos,
Impregnados do odor do seu corpo ou da sua respiração,
          nascendo do seu olhar.

[WALT WHITMAN (1819 - 1892)]
(Folhas de Erva)
(selecção e tradução de José Agostinho Baptista)
(in Poemário Assírio & Alvim 2013)

quinta-feira, 29 de janeiro de 2015

COMO UMA VOZ

Como uma voz de fonte que cessasse
(E uns para os outros nossos vãos olhares
Se admiraram), p'ra além dos meus palmares
De sonho, a voz que do meu tédio nasce

Parou... Apareceu já sem disfarce
De música longínqua, asas nos ares,
O mistério silente como os mares,
Quando morreu o vento e a calma pasce...

A paisagem longínqua só existe
Para haver nela um silêncio em descida
P'ra o mistério, silêncio a que hora assiste...

E, perto ou longe, grande lago mudo,
O mundo, o informe mundo onde há a vida...
E Deus, a Grande Ogiva ao fim de tudo...

[FERNANDO PESSOA (1888 - 1935)]
(Poesia 1902-1917)
(edição de Manuela Parreira da Silva, Ana Maria Freitas e Madalena Dine)
(in Poemário Assírio & Alvim 2013)

quarta-feira, 28 de janeiro de 2015

SOU UMA CONTORCIONISTA

Sou uma contorcionista
o que pressupõe que o não sou
durmo bem numa mala
dobrada sobre mim
e mal numa cama
mesmo de marfim
nada é tão triste
como uma rima
Bernardim
triste como uma rima
só a senhora Arima
tão contorcionista
que era o nome próprio
que tinha contorcido
e não um pulso
ou um pé.

[ADÍLIA LOPES (1960)]
[Dobra (Poesia Reunida 1983-2007)]
(in Poemário Assírio & Alvim 2013)

terça-feira, 27 de janeiro de 2015

UM DISFARCE UMA ANTIGUIDADE

Acendo a luz. A luz vive de um
disfarce de uma antiguidade
atómica.

E cada brilho tem um vento atento
o sopro um evento especial a morte:
desmancha-se a luz toda
(o feto dela) de um só corte.

[LUIZA NETO JORGE (1939 - 1989)]
[Poesia (1963 - 1989)]
(organização e prefácio de Fernando Cabral Martins)
(in Poemário Assírio & Alvim 2014)

segunda-feira, 26 de janeiro de 2015

OUTRA ESTAÇÃO

OUTRA ESTAÇÃO:
                                 mas não o ciclo
em que o sol se amedronta ou reanima,

    os jardins se reduzem
a um corpo transido,
ou estuantes projectam seu domínio
em laivos e oloroso alento,

    os frutos se completam a acender
o gosto e as mãos que os solicitam,
ou se decompõem na lembrança
da imagem que nos gasta ao esvair-se.

   É o curso exausto pelo entorpecer
do ímpeto do sangue,

   com a voz despojada da harmonia
que dá sua força aos nomes,
e lábios que ao buscarem rostos deensos
aspiram cinzas, sombras:

cerram-se os olhos, até se consumar
a hora lenta que os rende
pela estrela da tarde.

[JOSÉ BENTO (1932)]
(Alguns Motetos)
(in Poemário Assírio & Alvim 2013)

domingo, 25 de janeiro de 2015

EPÍGRAFE PARA A NOSSA SOLIDÃO

Cruzámos nossos olhos em alguma esquina
demos civicamente os bons dias:
chamar-nos-ão vais ver contemporâneos

[RUY BELO (1933 - 1978)]
(Todos os Poemas)
(in Poemário Assírio & Alvim 2013)

sábado, 24 de janeiro de 2015

ARROGÂNCIA

Ignoradas setecentas
comeram-lhes a carne flagelada
os seus restos
atiraram para a câmara gelada
o ar,
sempre a correr entre afazeres
que ficou conspurcado com dizeres,
trás o ignóbil
que não sendo prémio Nobel
verborreia ementas
sobre entes esquecidos.
Ignoradas setecentas
comidas por malcheirosos
roedores
entre sofridos corredores
no patamar de umas escadas
arrumadas
por não passarem ao largo
de quem tem cargo
de surreal nefasto príncipe
da morte.
Ignoradas setecentas
sem formadas culpas
de vontades atadas
e sortes disparatadas
vagueiam na aleatória ordem
de uma famigerada oratória
de um coveiro imundo
que, inchado, pensa
que é seu o mundo.
Ignoradas setecentas
que vão engrossar
o exército de quem virá
nos resgatar.

[Carlos Sousa Ramos - 24.01.2015, 22h10]

sexta-feira, 23 de janeiro de 2015

DAS PENAS

Das penas
e suas algemas
se cria a barreira
da fronteira
fechada
fachada
de um futuro
obscuro
e o movimento, puro
estanque
se estanca
e não ultrapassa.

Movimento assim
com medo
sem tempo
no espaço
desliza
agoniza
e não chega
a nenhum lado.

Perde
a transformação
a transmutação
a possibilidade
de reconfiguração
numa aceleração
para
uma outra realidade.

[CARLOS SOUSA RAMOS _ a 17.07.2014]

quinta-feira, 22 de janeiro de 2015

SÉRGIO

Onde agora estás não alcançam
o clamor dos magistrados
nem a faca do assassino.
A tua própria morte não te pertence já,
é assunto nosso, desprovido e inerte.
Que faremos nós com o teu inúmero corpo,
como te diremos o que está a acontecer-te?

Fechou-se qualquer coisa qualquer porta
espessa e desabitada,
a faca pôs tudo como estava.

Sobram, inúteis, as lágrimas (mas isso que te importa?),
as últimas palavras, a última carta.
Se não fosse essa faca seria outra faca
noutra noite noutra autoestrada
e se não fosses tu seria outro
do mesmo modo vivo e morto.

[MANUEL ANTÓNIO PINA (1943 - 2012)]
(Poesia, Saudade da prosa - uma antologia pessoal)
(in Poemário Assírio & Alvim 2013)

quarta-feira, 21 de janeiro de 2015

SAGRAÇÃO de Enki-du por sua mãe Ninsun

A ti que não és  raça dos cabeças negras
A ti ponho no chão da Egalmah
E ponho em ti o tirso do amável
E te dou nome Soldado de Anu
E te dou nome Pedra de Guilgamesh

Como o leão que na grande corrida mantém a cabeça imóvel
Sê barco do meu filho no mar perigoso
Na água a que não conhecemos o fundo
Na montanha do cedro a quem nunca ninguém viu a altura
Nos sete brilhos da Humbala, causa de todo o mal.

[EPOPEIA DE GUILGAMESH (C. SÉC. XXV A.C.]
(in Rosa do Mundo - 2001 Poemas para o Futuro - tradução de Mário Cesariny)
(in Poemário Assírio & Alvim 2013)

terça-feira, 20 de janeiro de 2015

SE DA BOCA DE OSSIAN

Se da boca de Ossian canto e gesta
Não ouvi, nem provei do vinho antigo,
Por que vejo um recanto de floresta
Sob a lua da Escócia em sangue vivo?

Súbito no silêncio me golpeiam
Gritos de harpa e corvo em seu chamar,
As vestes dos guerreiros me lampejam
Pelos olhos sob o sangrento luar.

Maravilhada herança me proveio
De longínquos cantores: errantes sonhos,
De próximos e parentes por direito
Desprezamos as vozes enfadonhas.

Mais de um tesouro, os netos evitando,
Quem sabe dos bisnetos vá tombar;
O bardo comporá o alheio canto
E como seu o irá proclamar.

[OSSIP MANDELSTAM (1891 - 1938)]
(Guarda Minha Fala para Sempre - tradução de Nina Guerra e de Filipe Guerra)
(in Poemário Assírio & Alvim 2013)

segunda-feira, 19 de janeiro de 2015

FONTE

I

Ela é a fonte. Eu posso saber que é
a grande fonte
em que todos pensaram. Quando no campo
se procurava o trevo, ou em silêncio
se esperava a noite,
ou se ouvia algures na paz da terra
o urdir do tempo --
cada um pensava na fonte. Era um manar
secreto e pacífico.
Uma coisa milagrosa que acontecia
ocultamente.

Ninguém falava dela, porque
era imensa. Mas todos a sabiam
como a teta. Como o odre.
Algo sorria dentro de nós.

Minhas irmãs faziam-se mulheres
suavemente. Meu pai lia.
sorria dentro de mim uma aceitação
do trevo, uma descoberta muito casta.
Era a fonte.

Eu amava-a dolorosa e tranquilamente.
A lua formava-se
com uma ponta subtil de ferocidade,
e a maça tornava um princípio
de esplendor.

Hoje o sexo desenhou-se. O pensamento
perdeu-se e renasceu.
Hoje sei permanentemente que ela
é a fonte.

[HERBERTO HELDER (1930)]
(Ofício Cantante)
(in Poemário Assírio & Alvim 2013)

domingo, 18 de janeiro de 2015

DOM DO POEMA

Trago-te de Idumeia a filha duma noite!
Negra, de asa a sangrar, sem plumas e sem cor,
Pelo vidro a arder de arómatas e ouro
Pelas janelas frias, ai de nós! sempre foscas,
A aurora se lançou sobre a lâmpada angélica.
Palmas! E quando ela exibiu a relíquia
Ao pai a esboçar um sorriso inimigo
A solidão azul e estéril fremiu.
Ó mulher embalando a filha e a inocência
Dos pés frios, acolhe o horrível nascimento:
E de voz a imitar a viola e o cravo
Com o dedo já seco o seio premirás
Por que escorre a mulher tão branca e sibilina
Para o lábio voraz do ar azul e virgem?

[STÉPHANE MALLARMÉ (1842 - 1898)]
(Poesias - tradução, prefácio e notas de José Augusto Seabra)
(in Poemário Assírio & Alvim 2013)

quarta-feira, 14 de janeiro de 2015

IMENSO...

IMENSO sobre a melancolia das famílias o trovão faz
estremecer as cabeças citadinas,
enquanto uma veia pulsa,
desditosa do dia.

Terás compaixão de quem assim se verga e devagar
resvala para o vácuo das lâmpadas?

Nesta cama de trevas recordas a alegria, algures no
início das fontes.
Infância, sal de toda a cegueira e cegos os navios.

Fazes nascer o fogo.
É madrugada nos declives.
Labaredas de incenso consomem as tuas mãos, de repente
sobre o mundo.

Íngremes, os degraus tremeluzem ao alto, onde a palavra
de deus desenha uma cicatriz luminosa
quando o galo canta.

[JOSÉ AGOSTINHO BAPTISTA (1948)]
(Biografia)
(in Poemário Assírio & Alvim 2013)

terça-feira, 13 de janeiro de 2015

ZAQUEU

A árvore foi a forma de te ver
E desci para abrir a casa.
De me teres visitado e avistado
Entre os ramos
Fizeste-me passagem
Da folha ao voo do pássaro
Do sol à doçura do fruto-
Para me encontrares me deste
A pequenez.

[DANIEL FARIA (1971- 1999)]
[Poesia (edição de Vera Vouga)]
(in Poemário Assírio & Alvim 2014)

segunda-feira, 12 de janeiro de 2015

ADOLESCENTE

A íntima cruzada da sua alma dispersa,
o sangue
insuportável, possuíam-no.
E era como um coro, rouco, gregoriano,
esse cavalgar perdido no deserto, esse amalgamar
de cruéis erros de cálculo, de posses
repetidas pela insónia.

Testava o tamanho do seu membro
como quem pretende contratar para si a morte,
ou temia esse glandular inflado do desejo
nas sevícias da infância
no corpo que cresce só e se repete na noite
numa fala só, isolada do mundo.

Tornado que foi público
o seu acesso ao sexo, a sua forma de estar por entre
a gente e nesse estranho lume caldeado,
tornaram-se os testículos
em sinais de fogo que pouco a pouco
se cobriam de água, impura,
magoada.

E depois disso, diz-se, nunca mais sorriu.

[ARMANDO SILVA CARVALHO (1938)]
(De Amore)
(in Poemário Assírio & Alvim 2013)

domingo, 11 de janeiro de 2015

NOVE, DEZ E ONZE DE JANEIRO

NUVENS

Antes de adormecer o corpo luta
pelas falsas imagens que transitam
para o sono
como para uma praia onde se salve
a existência náufraga da água
Nada do que ele vê é o que lhe
mostrou o tempo que o agride e ama
Como os olhos do sonho criará
a realidade em fogo que o amor
já não pode alcançar
então as nuvens através das
quais o mundo volta aos olhos
crescem até que a tempestade mate
todo o passado

[GASTÃO CRUZ (1941)]
[Os Poemas (1960 - 2006)]


ASCESE

Há os que se deitam sobre a relva
Como sombras que dormem sobre túmulos.
tu, porém, dormes sobre a morte
A longa ausência que há dentro dos poemas

[DANIEL FARIA  (1971 - 1999)]
[Poesia (edição de Vera Vouga)]


CORPO

que te seja leve o peso das estrelas
e da tua boca irrompa a inocência nua
dum lírio cujo caule se estende e
ramifica para lá dos alicerces da casa

abre a janela debruça-te
deixa que o mar inunde os órgãos do corpo
espalha lume na ponta dos dedos e toca
ao de leve aquilo que deve ser preservado

mas olho para as mãos e leio
o que o vento norte escreveu sobre as dunas

levanto-me do fundo de ti humilde lama
e num soluço da respiração sei que estou vivo
sou o centro sísmico do mundo

[AL BERTO (1948 - 1997)]
[Vigílias (selecção e prólogo de José Agostinho Baptista)]
(in, todos os três, em Poemário Assírio & Alvim 2013)

quinta-feira, 8 de janeiro de 2015

CERTA VEZ NA NOITE, RUIVAMENTE...

Esquivo sortilégio o dessa voz, opiada
Em sons cor de amaranto, às noites de incerteza,
Que e lembro não sei d'Onde - a voz de uma Princesa
Bailando meia nua entre clarões de Espada.

Leonina, ela arremessa a carne arroxeada;
E bêbada de Si, arfante de Beleza,
Acera os seios nus, descobre o sexo... Reza
O espasmo que a estrebucha em Alma copulada...

Entanto nunca a vi mesmo em visão. Somente
A sua voz a fulcra ao meu lembrar-me. Assim
Não lhe desejo a carne - a carne inexistente...

É só de voz-em-cio a bailadeira astral -
E nessa voz-Estátua, ah! nessa voz-total,
É que eu sonho esvair-me em vícios de marfim...

                                               Lisboa, 1914 - janeiro 31.

[MÁRIO DE SÁ-CARNEIRO (1890 - 1916)]
(Verso e Prosa / edição de Fernando Cabral Martins)
(in Poemário Assírio  Alvim 2013)

quarta-feira, 7 de janeiro de 2015

UM INSECTO

UM INSECTO desajeitado, muito maluco,
sobrevoou a folha e estatelou-se
na pequena poça de água formada
pelas gotas que iam caindo
uma a uma devagar. vindo
do nada, o frenesi de uma imagem
irresistível que é preciso captar
ataca pela base e chega depois
aos dedos, faz descobrir o uso doméstico
de uma metáfora e escrever,
porque é uma coisa que ninguém
pode ouvir, coisas deste género:
parece a minha vida, com a infância
a pular sobre a adolescência
e a estatelar-se redonda aí por essa idade
em que se sente a necessidade
de ser parte de um casal, em que se acha
mesmo que ser parte de um casal
é a coisa melhor do mundo.
Não se imagine o poema, imagine-se
o diálogo teatral, com a réplica numa ira
tradicional, ligada às impossibilidades
do ser, a plenos pulmões uma raiva
que não se sabe bem de onde vem.

[HELDER MOURA PEREIRA (1949)]
(Se as Coisas Não Fossem o que São)
(in Poemário Assírio & Alvim, 2013)

terça-feira, 6 de janeiro de 2015

O SOL

acende as árvores na luz e no equilíbrio dos mundos
e imprime o seu leve gesto na tua retina; em resposta
as árvores, com a sua sombra, desenham, na parede
branca, e sonham, nas tuas pálpebras descendo,


uma escrita oriental, levemente dançando.

[MANUEL GUSMÃO (1945)]
(Pequeno Tratado das Figuras)
(in Poemário Assírio Alvim 2014)

segunda-feira, 5 de janeiro de 2015

A LABAREDA

A LABAREDA da estrela oculta a estrela, numa
rebentação de luz
a camisa oculta a camisa, e o sangue às riscas
gira e brilha no fundo da camisa contra a estrela:
que te abalam do direito adentro ao esquerdo:
o choque púrpura, o ascensional
néon ardendo
- ?e como é que isto é um segredo? -
a mão oculta-se na queimadura a cada faísca da folha
- ?mas como se escreve o sentido? -
o sangue que o escreve oculta o sangue e o escrito
- ?e então como se oculta e desoculta
isto: a estrela que te devora e de que tremes todo,
bêbado e nocturno?

[HERBERTO HELDER (1930)]
(Ofício Cantante)
(in Poemário Assírio & Alvim 2013)

domingo, 4 de janeiro de 2015

DE TARDE

Naquele <<pic-nic>> de burguesas,
Houve uma coisa simplesmente bela,
E que, sem ter história nem grandezas,
em todo o caso dava aguarela.

Foi quando tu, descendo do burrico,
Foste colher, sem imposturas tolas,
A um granzoal azul de grão-de-bico
Um ramalhete rubro de papoulas.

Pouco depois, em cima duns penhascos,
Nós acampámos, inda o sol se via;
E houve talhadas de melão, damascos,
E pão-de-ló molhado em malvasia.

mas, todo púrpuro, a sair da renda
Dos teus dois seios como duas rolas,
Era o supremo encanto da merenda
O ramalhete rubro das papoulas!

[CESÁRIO VERDE (1855 - 1886)]
(O Livro de Cesário Verde)
(posfácio e fixação do texto de António Barahona)
(in Poemário Assírio & Alvim, 2013)

sábado, 3 de janeiro de 2015

AINDA FRESCOS

AINDA FRESCOS sobre a húmida areia.
A fugitiva hora, reevoquei-a,
- Tão rediviva! nos meus olhos baços...

Olhos turvos de lágrymas contidas.
- Mesquinhos passos, porque doidejastes
Assim transviados, e depois tornastes
Ao ponto das primeiras despedidas?

Onde fostes sem tino, ao vento vário,
Em redor, como as aves num aviário,
Até que a asita fofa lhes faleça...

Toda essa extensa pista - para quê?
Se há-de vir apagar-vos a maré,
Com as do novo rasto que começa...

[CAMILO PESSANHA (1867 - 1926)]
(Clepsydra, Pôemas de Camilo Pessanha)
(posfácio e fixação do texto de António Barahona)
(in Poemário Assírio & Alvim, 2013)

sexta-feira, 2 de janeiro de 2015

DITOSO SEJA

DITOSO SEJA aquele que somente
Se queixa de amorosas esquivanças;
Pois por elas não perde as esperanças
De poder nalgum tempo ser contente.

Ditoso seja quem, estando ausente,

Não sente mais que a pena das lembranças;
Porque, inda que se tema de mudanças,
Menos se teme a dor quando se sente.

Ditoso seja, enfim, qualquer estado

Onde enganos, desprezos e isenção
Trazem o coração atormentado.

Mas triste quem se sente magoado

De erros em que não pode haver perdão,
sem fica na alma a mágoa do pecado.

[LUÍS DE CAMÕES (1524? - 1580)]
(Sonetos de Luís de Camões (escolhidos por Eugénio de Andrade))
(Retirado de: Poemário Assírio & Alvim, 2013)

quinta-feira, 1 de janeiro de 2015

POEMA

Faz-se luz pelo processo
de eliminação de sombras
Ora as sombras existem
as sombras têm exaustiva vida própria
não dum e doutro lado da luz mas no próprio seio dela
intensamente amantes   loucamente amadas
e espalham pelo chão braços de luz cinzenta
que se introduzem pelo bico nos olhos do homem

Por outro lado a sombra dita a luz
não ilumina   realmente   os objectos
os objectos vivem às escuras
numa perpétua aurora surrealista
com a qual não podemos contactar
senão como os amantes
de olhos fechados
e lâmpadas nos dedos   e na boca

[MÁRIO CESARINY (1923 - 2006)]
(Uma Grande Razão - os poemas maiores)
(retirado de: Poemário Assírio & Alvim, 2013)