quinta-feira, 26 de fevereiro de 2015

[A INTELIGÊNCIA É UM ESPAÇO]

A inteligência é um espaço
que inviabiliza o tempo.
E acolhe, no entanto,
todo o visível concreto
para o devolver abstracto
do real. E mais objecto.
Porque, mundo enfim, e estado
de terra e conhecimento,
é anterior a o pensarmos
e só depois tema. Aberto
ao invisível trabalho
que se obstina. Toma alento
e vai subindo. Até o espaço
da inteligência e do tempo
se volverem num só alto
país de conhecimento.

[FERNANDO ECHEVARRÍA]
(Categorias E Outras Paisagens)

quarta-feira, 25 de fevereiro de 2015

[INVERNO] E [LUZ DE NEVE]

Hoje, dois poemas:

INVERNO

Folhas mortas, espezinhadas
na lama do passeio.

A luz perdida das nervuras.

Dorsos que estalam
ao partir.

No mês passado
ainda rolavam
com a ventania.


LUZ DE NEVE


Uma luz de neve,
horizontal e fria.

Sem destino algum,
ofusca
e cega.

Onde não há abetos,
nem pistas de alces,
nem ravinas por perto.

Vazia duna de luz
perdida.

A luz da neve.

[JOSÉ MANUEL FERREIRA LOPES]

terça-feira, 24 de fevereiro de 2015

[NO MEU EDEN]

No meu Eden todos observamos rituais compulsivos e
tabus supersticiosos, mas não temos moral: na sua Nova
Jerusalém os templos estarão vazios e todos serão devotos
das virtudes racionais.

[W. H. AUDEN (1907 - 1973)]
(O Massacre dos Inocentes -uma antologia)
(tradução de José Alberto Oliveira)
(in Poemário Assírio & Alvim 2013)

segunda-feira, 23 de fevereiro de 2015

[NADA PODE]

Nada pode ser mais complexo que um poema,
organismo superlativo absoluto vivo,
apenas com palavras,
apenas com palavras despropositadas,
movimentos milagrosos de míseras vogais e consoantes,
nada mais que isso,
música,
e o silêncio por ela fora

[HERBERTO HELDER (1930)]
(Servidões)
(in Poemário Assírio & Alvim 2014)

domingo, 22 de fevereiro de 2015

[SOZINHA NO BOSQUE]

Sozinha no bosque
Com meus pensamentos,
Calei as saudades,
Fiz tréguas a tormentos.

Olhei para a Lua,
Que as sombras rasgava,
Nas trémulas águas
Seus raios soltava.

Naquela torrente
Que vai despedida
Encontro assustada
A imagem da vida.

Do peito, em que as dores
Já iam cessar,
Revoa a tristeza,
E torno a pensar.

[MARQUESA DE ALORNA (1750 - 1839)]
(in "Do Infinito Mar Do Meu Desejo")

sábado, 21 de fevereiro de 2015

[ONDE POREI MEUS OLHOS QUE NÃO VEJA]

Onde porei meus olhos que não veja
A causa, donde nasce meu tormento?
A que parte irei co pensamento
Que para descansar parte me seja?

Já sei como s'engana quem deseja
Em vão amor firme contentamento
De que nos gostos seus, que são de vento,
Sempre falta seu bem, seu mal sobeja.

Mas ainda sobre claro desengano
Assim me traz est'alma sogigada,
Que dele está prendendo o meu desejo.

E vou de dia em dia, de ano em ano,
Após um não sei quê, após um nada,
Que, enquanto mais me chego, menos vejo.

[DIOGO BERNARDES (1530? - 1596?)]
(in "Do Infinito Mar do Meu Desejo")

sexta-feira, 20 de fevereiro de 2015

[CLAROS OLHOS AZUIS, OLHOS FERMOSOS,]

Claros olhos azuis, olhos fermosos,
Que o lume destes meus escurecestes;
Olhos que o mesmo amor de amor vencestes
Cos vivos raios sempre vitoriosos;

Olhos serenos, olhos venturosos,
Que ser luz de tal gesto merecestes,
Ditosos em render quanto rendestes,
E em nunca ser rendidos mais ditosos;

Que mour'eu por vos ver, e que vos traga
Nas meninas dos meus perpetuamente
Cousa é que justamente amor ordena.

Mas, que de vós não tenha mais que a pena
Com que amor tanta fé tão mal me paga,
Nem o diz a razão, nem o consente.

[LUÍS VAZ DE CAMÕES (1524? - 1580)]
(in "Do Infinito Mar Do Meu Desejo")

quinta-feira, 19 de fevereiro de 2015

[AMOR, CO A ESPERANÇA JÁ PERDIDA]

Amor, co a esperança já perdida,
Teu soberano templo visitei;
Por sinal do naufrágio que passei,
Em lugar dos vestidos, pus a vida.

Que queres mais de mim, que destruída
Me tens a glória toda que alcancei?
Não cuides de forçar-me, que não sei
Tornar a entrar onde não há saída.

Vês aqui alma, vida e esperança,
Despojos doces de meu bem passado,
Enquanto quis aquela que eu adoro:

Nelas podes tomar de mim vingança;
E se ainda não estás de mim vingado,
Contenta-te co as lágrimas que choro.

[LUÍS VAZ DE CAMÕES (1524? - 1580)]
(in "Do Infinito Mar do Meu Desejo")

quarta-feira, 18 de fevereiro de 2015

VERSOS

Versos! Versos! Sei lá o que são versos...
Pedaços de sorriso,branca espuma,
Gargalhadas de luz, cantos dispersos,
Ou pétalas que caem uma a uma...

Versos!... Sei lá! Um verso é teu olhar,
Um verso é teu sorriso e os de Dante
Eram o seu amor a soluçar
Aos pés da sua estremecida amante!

Meus versos!... Sei eu lá também que são...
Sei lá! Sei lá!... Meu pobre coração
Partido em mil pedaços são talvez...

Versos! Versos! Sei lá o que são versos...
Meus soluços de dor que andam dispersos
Por este grande amor em que não crês!...

[FLORBELA ESPANCA (1894 - 1930)]
(in "Do Infinito Mar Do Meu Desejo")

terça-feira, 17 de fevereiro de 2015

ESQUECIMENTO

Esse de quem eu era e que era meu,
Que foi um sonho e foi realidade,
Que me vestiu a alma de saudade,
Para sempre de mim desapar'ceu.

Tudo em redor então escureceu,
E foi longínqua toda a claridade!
Ceguei... tacteio sombras... Que ansiedade!
Apalpo cinzas porque tudo ardeu!

Descem em mim poentes de Novembro...
A sombra dos meus olhos, a escurecer...
Veste de roxo e negro os crisântemos...

E desse que era meu já me não lembro...
Ah, a doce agonia de esquecer
A lembrar doidamente o que esquecemos!...

[FLORBELA ESPANCA (1894 - 1930)]
(in "Do Infinito Mar Do Meu Desejo")

segunda-feira, 16 de fevereiro de 2015

ÚLTIMO SONETO

Que rosas fugitivas foste ali:
Requeriam-te os tapetes - e vieste...
- Se me dói hoje o bem que me fizeste,
É justo, porque muito te devi.

Em que seda de afagos me envolvi
quando entraste, nas tardes que apareceste -
Como fui de percal quando me deste
Tua boca a beijar, que remordi...

Pensei que fosse o meu teu cansaço -
Que seria entre nós um longo abraço
O tédio que, tão esbelta, te curvava...

E fugiste... Que importa? se deixaste
A lembrança violeta que animaste,
Onde a minha saudade a Cor se trava?...

[MÁRIO DE SÁ-CARNEIRO (1890 - 1916)]
(in "Do Infinito Mar Do Meu Desejo")]

domingo, 15 de fevereiro de 2015

CANÇÃO TRISTE

O sol, que dá nas ruas, não dá
No meu carinho.
Felicidade quando virá?
Por que caminho?

Horas e horas por fim são meses
De ansiado bem.
Eu penso em ti indecisas vezes,
E tu ninguém!

Não tenho barco para a outra margem,
Nem sei do rio
Ah! E envelheceu já tua imagem
E eu sinto frio.

Não me resigno, não me decido,
Choro querer...
Sempre eu! Ó sorte, dá-me o olvido
De pertencer!

Enterrei hoje outra vez meu sonho
Amanhã virá
Tornar-se triste por ser risonho,
E não ser já.

Inútil brisa roçando leve
Já morta flor,
Saudando a um bem que não se teve
Vácuo sem dor,

Triste se é triste, e de o ser não finda
Quando é conforto
Como a mãe louca que embala ainda
Um filho morto.

[FERNANDO PESSOA (1888 - 1935)]
(in "Do Infinito Mar Do Meu Desejo")

sábado, 14 de fevereiro de 2015

DENTRO EM MEU CORAÇÃO FAZ DOR

Dentro em meu coração faz dor,
Não sei donde essa dor me vem.
Auréola de ópio de torpor
Em torno ao meu falso desdém,
E laivos híbridos de horror
Como estrelas que o céu não tem.

Dentro em mim cai silêncio em flocos,
Parou o cavaleiro à porta...
E o frio, e o gelo em brancos blocos
Mancha de hirto a noite morta...
Meus tédios desiguais, sufoco-os
A minha alma jaz ela e absorta.

Dentro em meu pensamento é mágoa...
Corre por mim um arrepio
Que é como o afluxo à tona de água
De se saber que há sob o rio
O que... Brilha na noite a frágua
Onde o tédio bate o ócio a frio.

[FERNANDO PESSOA (1888 - 1935)]
(in "Do Infinito Mar Do Meu Desejo")

sexta-feira, 13 de fevereiro de 2015

ESCUTA-ME PIEDOSAMENTE

Escuta-me piedosamente
Não vale a pena amar-me não,
Mas o que o meu coração sente -
Ah, quero que te passe rente
À ideia do teu coração...

Quero que julgues que podias
Se quisesses, amar-me. Só
Saber isso consolaria
Minha alma erma de alegria...
Ter a certeza do teu dó!...

Teu dó, o teu quasi carinho...
Qualquer sentimento por mim...
Que não me deixasse sozinho...
Eu posso construir um ninho...
Com o pouco que me vem de ti...

Eu tenho em mim tanta pena
Qu'ria ao menos que tu também
Viesses ter pena serena
Não de mim ou da minha pena,
Essa pena que ninguém tem.

[FERNANDO PESSOA (1888 - 1935)]
(in "Do Infinito Mar Do Meu Desejo")

quinta-feira, 12 de fevereiro de 2015

ANTÍGONA

Como te amo? Não sei de quantos vários modos
Eu de adoro mulher de olhos azuis e castos;
Amo-te co'o fervor  dos meus sentidos gastos;
Amo-te co'o fervor dos meus preitos diários.

É puro o meu amor, como os puros sacrários;
É nobre o meu amor, como os mais nobres fastos;
É grande como os mar's altíssonos e vastos
É suave como o odor de lírios solitários.

Amor que rompe enfim os laços crus do ser;
Um tão singelo amor, que aumenta na ventura;
Um amor tão leal que aumenta no sofrer;

Amor de tal feição que se na vida escura
É tão grande e nas mais vis ânsias de viver;
Muito maior será na paz da sepultura!

[FERNANDO PESSOA (1888 - 1935)]
(in "Do Infinito Mar do Meu Desejo", Publicações D. Quixote, Fevereiro de 2015)

quarta-feira, 11 de fevereiro de 2015

UMA AMADA DESCONHECIDA...

(...) Uma amada desconhecida possui, sem dúvida, um
encanto mágico. Mas a tendência para o desconhecido,
para o indefinido, é extremamente perigosa e nefasta. As
revelações não se deixam conquistar pela força.

[NOVALIS (1772 - 1801)]
(Fragmentos de Novalis)
(selecção, tradução e desenhos de Rui Chafes)
(in Poemário Assírio & Alvim 2013)

terça-feira, 10 de fevereiro de 2015

TRILOGIA A propósito da teoria das nuvens de Howard

ATMOSFERA
<<O mundo é tão vasto, espaçoso,
O céu tão amplo e majestoso!
Tudo quer ver o meu olhar,
Mas não sei como o imaginar>.

Para me encontrar no infinito,
Primeiro distingo, depois junto:
Grato está meu canto e seu lume
Ao homem que às nuvens deu nome.

[...]

[JOHANN WOLFGANG GOETHE (1749 - 1832)]
(O Jogo das Nuvens)
(selecção, tradução, prefácio e notas de João Barrento)
(in Poemário Assírio & Alvim 2014)

segunda-feira, 9 de fevereiro de 2015

AMARGO DE BOCA

No âmago de um amargo de boca
se encontra uma qualquer idiota ideia
que se insinua, nos apanha, nos toca
e nos penetra na veia.
Ficamos angustiados, dependentes
querendo cada vez mais
que o desejo não se vá
que nos dê cabo dos dentes
e que, oxalá, não se ausente.
E o tempo passa e ficamos doentes
de raiva por não ter reagido
e mandado àquela parte o foragido
que nos veio empestar as mentes.
Ah!, quantas ideias do sério nos tiram
a paciência nos roubam
e as amarras nos colocam
nas vontades que ainda ficaram.
Ah!, e quantas vezes, a quente, agimos
e quantas vezes, sem conta, fugimos
e nos vamos enfiar no colo de alguém
que nos diz: pois, eu estou assim também?

No âmago de um amargo de boca
se perde um momento de felicidade.

[CARLOS SOUSA RAMOS]

domingo, 8 de fevereiro de 2015

O MEGHADUTA

Ah, sublime poeta, aquele primeiro santificado dia
De Asarh no qual, num desconhecido ano, escreveste
O teu Meghaduta! As tuas estrofes são
Como escuros leitos de sonoras nuvens, transformando a desgraça
De todos os amantes separados através do mundo
Em momentosa música.

Quem poderá falar das espessas nuvens desse dia,
Da alegria da luz, da fúria do vento
Sacudindo com o seu rugido os torreões de Ujjayini?
Quando as tormentosas nuvens colidiram, o seu estrondo libertou
Num único dia o coração aprisionado e aflito de milhares de anos
De abatimento, Lágrimas há muito reprimidas, quebrando
Os laços do tempo, parecem ter caído
Em cascata nesse dia, inundando as tuas nobres estrofes.

Será que cada exilado do mundo nesse dia
Levantou a cabeça, uniu as mãos, olhou a sua casa amada
E cantou às nuvens a mesma
Canção de saudade? Será que cada amante pediu a uma fresca e
             liberta nuvem
Para levar nas suas asas uma magoada mensagem de amor
Até à janela distante onde a sua amada
Jazia no chão em desordenadas roupas,
Com o cabelo solto, com os olhos em lágrimas?
[...]

[ RABINDRANATH TAGORE (1861 - 1941)]
(Poesia)
(selecção e tradução de José Agostinho Baptista)
(in Poemário Assírio & Alvim 2013)

sábado, 7 de fevereiro de 2015

DESCRIÇÃO COITADA DE REPRODUÇÃO COLORIDA DE PAISAGEM SEM FIGURA

Sol-posto
de mau gosto
mal reproduzido
de postal
infeliz.
Pior fora o dia
dia de não contar
como tantos!
Existir tanto
pra viver tão pouco!
Minha mágoa incolor
vadiava em redor
e via com desdém
a terra aqui
e o mar além.
Cai névoa no meu sentir
névoa morna
como o hálito do quarto
do convalescente.
O herói do meu sonho
quer estar só
que o não vejam
a descansar.
Está a estudar o papel
da minha loucura
prò representar.
Toda a loucura é assim:
negra como a peçonha
e cheia de luz por dentro.

[JOSÉ DE ALMADA NEGREIROS (1896 - 1970)]
(Poemas)
(edição de Fernando Cabral Martins, Luís Manuel Gaspar e Mariana Pinto dos Santos)
(in Poemário Assírio & Alvim 2013)

sexta-feira, 6 de fevereiro de 2015

DÓI-ME QUEM SOU

Dói-me quem sou. E em meio da emoção
Ergue a fronte de torre um pensamento.
É como se na imensa solidão
De uma alma a sós consigo, o coração
Tivesse cérebro e conhecimento.

Numa amargura artificial consisto,
Fiel a qualquer ideia que não sei,
Como um fingido cortesão me visto
Dos trajes majestosos em que existo
para a presença artificial do rei.

Sim, tudo é sonhar quanto sou e quero.
Tudo das mãos caídas se deixou.
Braços dispersos, desolado espero.
Mendigo pelo fim do desespero,
Que quis pedir esmola e não ousou.

[FERNANDO PESSOA (1888 - 1935)]
(Poesia 1918-1930)
(edição de Manuela Parreira da Silva, Ana Maria Freitas e Madalena Dine)
(in Poemário Assírio & Alvim 2013)

quinta-feira, 5 de fevereiro de 2015

A GUITARRA DA MOURARIA

Amo a tua guitarra, ó Mouraria,
em que um doer mourisco nos desola,
e as almas, sob a lua, acaricia,
como da Alfama a passional viola!...

Bem galantes solaus também carpia
Severa, essa Ninon de naifa e mola.
Mas há sangue em teus ais!... Tua magia
quantas vezes não traz a Cruz e a Estola!

Vai alta a lua. - Após a cavatina,
Almaviva, com zelos de Rosina,
dá seis golpes na amásia, com furor.

Almavia é marujo e de melenas.
Prisões, guitarras, ais, céu de açucenas.
- surge a Polícia... e prende, em fralda, o Amor.

[GOMES LEAL (1848 - 1921)]
(Mefistófeles em Lisboa . e outros humorismos poéticos)
(edição de José Carlos Seabra Pereira)
(in Poemário Assírio & Alvim 2013)

quarta-feira, 4 de fevereiro de 2015

AS VOZES

A infância vem
pé ante pé
sobe as escadas
e bate à porta

- Quem é?
- É a mãe morta
- São coisas passadas
- Não é ninguém

Tantas vozes fora de nós!
E se somos nós quem está lá fora
e bate à porta? E se nos formos embora?
E se ficámos sós?

[MANUEL ANTÓNIO PINA (1943 - 2012)]
(Nenhuma Palavra e Nenhuma Lembrança)
(in Poemário Assírio & Alvim 2014)

terça-feira, 3 de fevereiro de 2015

A ARTE

Arte
o prazer  que em bocadinhos
nos parte
que não dói
e que na realidade
de novo, nos constrói.

[CARLOS SOUSA RAMOS]

segunda-feira, 2 de fevereiro de 2015

ARTE POÉTICA

A palavra despe-se
O silêncio despe-se

Nus
O sexos ardem

O seios da palavra
Os músculos do silêncio

O silêncio
E a palavra

O poeta
E o poema.

[DANIEL FARIA (1971 - 1999)]
(Poesia)
(edição de Vera Goa)
(in Poemário Assírio & Alvim 2013)

domingo, 1 de fevereiro de 2015

OS CÃES

Eram loucos. Alguns deles eram loucos,
parados uma tarde inteira ao pé
do arame, esquecidos, sobre o pó,
gemendo lentamente, sei
de fonte segura que eram loucos,
alguns brutíssimos, rodam sobre si
próprios incansáveis, e ladram,
ou gemiam apenas, lentamente
como um sopro de vento
quando dá no capim, ou sobre
o pó gemem esquecidos, deitados,
furiosos, ladram, loucos
uma noite inteira, brutíssimos,
coçando-me incansável nas 
pontas do arame, e logo ladro,
gemem, <<está no papo>>, uma merda,
a merda destes cães deitados
porque em pé, percebes, eu já
não (aguento) e fiz o possível,
fizeram o possível por apenas
gemer somente, cães que somos
dez, vinte, chama-se <<Niassa>>,
ou <<Tejo>>, vinha deitar-se aqui,
e principalmente rodam, rodam sempre,
vou rodando à velocidade
incrível da bala. Eram loucos.

[FERNANDO ASSIS PACHECO (1937 - 1995)]
(A Musa Irregular)
(in Poemário Assírio & Alvim 2013)