terça-feira, 31 de julho de 2012

NOS DIAS NEVOENTOS...

Nos dias nevoentos fecho as janelas,
acendo a luz forte
e deito-me no tapete.

Leio ou penso.
Ou então fumo,
enquanto as camadas de silêncio se sobrepõem,
e as mais pesadas descem
e as mais leves se tornam pesadas,
até ser impossível destruir o silêncio.

É fascinante,
debaixo de uma luz que brilha tanto.

Lá fora, a terra
- a terra das criaturas que se aproximam uma das outras,
se tocam e falam.

O silêncio é sólido,
iluminado por cima,
aquecido pelos lados.

Durante seis meses fumo e leio,
estendido no tapete.

Depois chega o verão,
e subo à montanha,
e vou para o mar.


Rebento de sol e água,
do odor a terra quente
e agulhas de pinheiro.

Estou tremendamente forte.

 HERBERT HELDER
Tirado de “blog poesia”, facebook, 27.07.2012

segunda-feira, 30 de julho de 2012

FIQUE...

Fique na terra a triste humanidade
Nos seus loucos intentos enredada
Visto que essa só é sua vontade
Para Nós seja a paz tão desejada
Seja a suma e venal tranquilidade
Nada requeiro mais de Deus mais nada.

ÂNGELO DE LIMA (1872 – 1922) – Poesias Completas
(organização, prefácio e notas de Fernando Guimarães)

domingo, 29 de julho de 2012

ATA E DESATA

Ata e desata os nós aos dias meteorológicos, dias orais, manuais,
irredimíveis,
mais que sangue agudo da mão à língua,
que fruta acerba desmanchada
entredentes,
oh trabalha-me, intuito
lírico,
por fora esses dias manuais,
por dentro troca tudo meu tão certo secretário assim como um
                                                                                                                  sufoco,
ou isso

HERBERTO HELDER (1930) – Ofício Cantante

sábado, 28 de julho de 2012

FANTASMAS NAS CASAS NOVAS

Há algo de assustador nos fantasmas das casas novas:
Os fantasmas das casas velhas já são maus quanto baste:
Mas os fantasmas das casas novas são terríveis.
A grande novidade destas novas e desoladas casas
Já seria bem terrível sem os fantasmas.
Mas os fantasmas também são novos.
Raparigas tristes com blusas azuis
E pessoas nos seus assados de Domingo
Sob a grande luz do dia, dentro destas casas novas
Em ruas onde os homens varrem o vidro partido.

MALCOLM LOWRY (1909 – 1957)
As Cantinas e Outros Poemas do Álcool e do Mar
(selecção e tradução de José Agostinho Baptista)

sexta-feira, 27 de julho de 2012

O BOM FILHO JIM


 Gente pobre que não tem dinheiro para uma cerca pede ao filho Jim que seja uma cerca para o pátio das galinhas, quer dizer, só até que o navio deles chegue; no que ninguém acredita porque vivem no interior.
Mas de serve uma cerca à volta de um pátio das galinhas onde não há galinhas?
Comeste-las galinhas, Jim?
Não, nós nunca tivemos galinhas.
Então, o que estás a fazer cercando o que não temos?
Não sei, já esqueci…
Talvez fosse melhor seres uma galinha. Mas não comeces a andar por todo o lado, pois não temos cerca para evitar que a ave estúpida vá para o pátio do vizinho e acabe depenada para o jantar de domingo, disse-lhe o pai.
Caramba, só vou bicar à volta da casa; há uma data de minhocas saborosas debaixo do alpendre, disse o filho Jim…

RUSSEL EDSON (1935) – O Túnel
(selecção e tradução de José Alberto Oliveira)

quinta-feira, 26 de julho de 2012

CHAMO-TE…

Chamo-te bilha só para explicar
que saíste das mãos dum bom oleiro
entre os anjos celestes o primeiro
em nalgas e em cus mestres sem par

no começo do mundo a trabalhar
dizem que havia deles um milheiro
foi-te logo calhar o mais brejeiro
dos santos operários do lugar

nem Deus teve o topete de travar
pedal ou roda em seu rodar ligeiro
tudo o que ele desenhava era faceiro

sendo isto que eu conto verdadeiro
em vez de cu pôr bilha vem a par
o próprio do oleiro é modelar.
Lisboa, 4-VII-95
FERNANDO ASSIS PACHECO (1937 – 1995) – Respiração Assistida

quarta-feira, 25 de julho de 2012

ATRÁS DO NAVIO

Atrás do navio, atrás dos ventos que assobiam,
Atrás das velas brancas e pardas entre paus e cordas,
Enquanto por debaixo infinitas ondas se apressam, levantando
                o pescoço,
Perseguindo tenazmente o rastro do navio,
As ondas do oceano, efervescentes, borbulhantes, espreitam
                alegremente,
Ondas, ondulantes ondas, líquidas, desiguais, rivais,
Rindo e flutuando, curvando-se para o remoinho,
Onde o grande veleiro navega à superfície,
Ondas maiores e mais pequenas movendo-se ansiosamente na
                vastidão do oceano;
O rastro do navio que passa brilha e brinca debaixo do sol,
Matizada procissão com muita espuma e muitos fragmentos,
Seguindo o majestoso e rápido navio atrás da espuma do seu rastro.

WALT WHITMAN (1819 – 1892) – Folhas de Erva
(selecção e tradução de José Agostinho Baptista)

terça-feira, 24 de julho de 2012

DEIXA PASSAR O VENTO

Deixa passar o vento
Sem lhe perguntar nada.
Seu sentido é apenas
Ser o vento que passa…

Consegui que esta hora
Sacrificasse ao Olimpo.
E escrevi estes versos
Pra que os deuses voltassem.
12-9-1916
RICARDO REIS, Poesia
(edição de Manuela Parreira da Silva)

segunda-feira, 23 de julho de 2012

CANÇÃO DO POÇO

Brota, ó poço! Entoai-lhe cânticos!
Ao poço, que os príncipes cavaram,
Que os nobres do povo abriram,
Com o ceptro, com os seus botões.
LIVRO DOS NÚMEROS (c. 1200 A.C.)
In Rosa do Mundo – 2011 Poemas para o Futuro
(tradução de Sociedades Bíblicas Reunidas)

domingo, 22 de julho de 2012

VEIO UM BARCO...


Veio um barco,
Um homem sustendo sua vela,
Conduzindo-o com remo preso às falcas, dizendo:
<<Lá, na floresta de mármore,
                as árvores de pedra – emersas d’água –
                as frondes de pedra –
                lâmina de mármore, sobre lâmina,
                prata, aço sobre aço,
                bicos de prata erguendo-se e cruzando-se,
                proa ajustada contra proa,
pedra, camada sobre camada,
                reflete o ouro a flama de uma noite>>
Borso, Carmagnola, os artífices,  i vitrei,
Para lá, certo tempo, tempo após tempo,
E as águas mais ricas do que o vidro,
Ouro bronzeado, brasa sobre prata,
Potes de tinta à luz do archote,
O clarão de vagas sob proas,
E os bicos de prata erguendo-se e cruzando-se.
                Árvores de pedra, alvo e rosalvo na treva,
Ciprestes pelas torres
                Amontoados sob cascos, À noite.
[---]
EZRA POUND (1885 – 1972) – Os Cantos
(tradução e introdução de José Lino Grunewald)

sábado, 21 de julho de 2012

CANÇÃO DO CIGANO ESPANCADO

Vinte e quatro bofetadas.
Vinte e cinco bofetadas.
Depois, minha mãe, à noite,
mete-me em papel de prata.

Guarda Civil caminheira,
dá-me uns golinhos de água.
Água com peixes e barcos.
Água, água, água, água.

Ai, maioral dos civis
que estás ao alto na sala!
Não terás lenços de seda
para eu limpar a cara?

FREDERICO GARCIA LORCA (1899 – 1936) – Anjo e Duende
(tradução, apresentação e notas de Aníbal Fernandes)

sexta-feira, 20 de julho de 2012

NADA TÃO IMPORTANTE

Encerrou o século, com muitas janelas
partidas, paredes por rebocar,
tapumes derrubados; os mercados
regurgitam peças sobressalentes,
engrenagens estropiadas.
O cidadão, mosca torpe,
agarra-se ao bordo da mesa,
enquanto o inverno não chega.

Alguns morrem. Com razões de sobra.
Prosperam mecanismos,
outros sufocam, há reclamações
pelo atraso nas partidas.
O circo, caída a noite, parte –
esquecida, cabra magra
rilha a urtiga das pedras.

JOSÉ ALBERTO OLIVEIRA 81952)
Nada Tão Importante que Não Possa Ser Dito

quinta-feira, 19 de julho de 2012

CANSADO

Estou cansado…
Com as árvores entabulei conversas.
Com as ovelhas sofri o horror da seca.
Com os pássaros cantei nas florestas.
Amei as raparigas da aldeia.
Ergui os olhos para o sol.
Vi o mar.
Trabalhei com o oleiro.
Engoli o pó da estrada.
Vi as flores da melancolia no campo do meu pai.
Vi a morte nos olhos do meu amigo.
Estendi a mão para as almas dos afogados.
Estou cansado…

THOMAS BERNHARD (1931 – 1989) – Na Terra e no Inferno
(tradução de José A. Palma Caetano)

quarta-feira, 18 de julho de 2012

O NOCTURNO ATALHO

O que de sublime e doloroso o tempo guarda
precisava disso de maneira que até é difícil
porque se sentia só nos campos
onde os outros triunfam
descia o sombrio, o nocturno atalho

assim chegava cedo de mais à beira não do fim
mas do informulável
para quem as nossas pequenas imposturas
são uma perda, um delito, uma culpa.

JOSÉ TOLENTINO MENDONÇA (19665) – Baldios

terça-feira, 17 de julho de 2012

AMANDO.... AMAR

Amar é
paixão, amizade, transpiração
agruras, travessuras
dormir, acordar a sorrir
alegria, banho de água fria
sofrer, de saudade tremer
esperar, não ver o tempo passar
mergulhar, vindo do ar
o espaço atravessar
beijar, trepar, a pele curtir
e em vez de ir, ficar
chorar, gritar, calar
agrupar, passear, admirar
preconceito rasgar
construir, parir
a dois fugir, a dois regressar
partilhar, repartir
se divertir
ser, ter
e fazer, perder, desfazer
recomeçar, transformar
questionar, divagar
e, simplesmente
não se alterar por não saber
o que é amar, e
amando.... amar!
CARLOS SOUSA RAMOS (1956)

segunda-feira, 16 de julho de 2012

HINO A IXCOZAUHQUI

               No palácio da chama, só peço que não seja eu a vergonha
dos meus antepassados!
            Ao descer nele, que eu não vos envergonhe!
            Prendo uma corda à árvore sagrada, enrolo-a oito vezes,
para que o sacerdote possa descer também na morada mágica.
            Iniciai o canto na morada da chama, iniciai o canto na
morada da chama: por que não surfe o sacerdote? Por que não
se ergue o sacerdote?
            Os súbditos assistem na morada em chamas, e ele surge,
os seus súbditos assistem.
            Que os servos não se cansem de cantar na morada da
chama, que se maravilhem e dancem com prazer.
            Chamai então a Dama da cabeleira esparsa, da qual
dependem o nevoeiro e a chuva, chamai então a Dama.
México
In Oração dos Homens – Uam antologia  das tradições espirituais
(apresentação, selecção e tradução de Armando Silva Carvalho e de José Tolentino Mendonça)

domingo, 15 de julho de 2012

VISLUMBRE

Já caminhamos os dois, muito para cima.
Ainda não chegámos, mas pouco falta,
diz o senhor das grandes portas.
Estou a ver-te,
na tua embarcação de cedro antigo.
Atravessas a estepe, mais tarde,
com os magoados passos que te conduzem a
mim.
Levanto a mão direita, à saída da clareira,
e depois surges,
com dois pequenos anéis que brilham no céu.
Pronuncias o meu nome,
as quatro palavras da nossa vida –
pão, vinho, cálice, faca,
antes de chegares À minha mesa.
Além,
o lago é muito azul quando entras na água.

JOSÉ AGOSTINHO BAPTISTA (1948) – Quatro Luas

sábado, 14 de julho de 2012

A UM AMIGO QUE RETIRADO DA CORTE PASSOU A SUA VIDA


    Ditoso tu, porque em tua cabana,
moço e velho espiraste a brisa pura,
servindo-te de berço e sepultura
de palha o tecto, o solho de espadana.
    Na solidão em que, livre, se ufana
silente o sol com chama mais segura,
cada um dos dias mais espaço dura,
e a hora, sem ter voz, te desengana.
    Tu não contas por cônsules os anos;
teu calendário fazem-nos as colheitas;
pisas todo o teu mundo sem enganos.
    De tudo quanto ignoras te aproveitas;
prémios não buscas nem padeces danos,
tanto mais vives quanto mais te estreitas.

FRANCISCO QUEVEDO (1580 – 1645) – Antologia Poética
(selecção, tradução, prólogo e notas de José Bento)