quinta-feira, 14 de maio de 2015

[NO DESCARREGAR]

No descarregar de um olhar
se perfila o fim de um horizonte
vazio
conceito de uma utopia desgarrada
de efeito sem hipótese
indefinida tese
e demonstração infinita..

A mente que tal olhar
controla, também ela
de vazios
abundantemente cheia
quieta se perfila
estática se solidifica
e o horizonte não alcança.

E o ser, andante
portador de tais desvios
se encurrilha
sobre si se enrosca
e, sem dar conta,
falece.

E o mundo
que segue em frente
em direcção ao horizonte
envelhece
e apodrece.

[CARLOS SOUSA RAMOS]

quarta-feira, 13 de maio de 2015

E UMA PAIXÃO

visita-me enquanto não envelheço
toma estas palavras cheias de medo e surpreende-me
com teu rosto de Modigliani suicidado

tenho uma varanda ampla cheia de malvas
e o marulhar das noites povoadas de peixes-voadores
vem

ver-me antes que a bruma contamine os alicerces
as pedras nacaradas deste vulcão a lava de desejo
subindo à boca sulfurosa dos espelhos
vem

antes que desperte em mim o grito
dalguma terna Jeanne Hébuterne a paixão
derrama-a quando na tua ausência se prende às veias
prontas a esvaziarem-se do rubro ouro

perco-te no sono das marítimas paisagens
estas feridas de barro e quartzo
os olhos escancarados para a infindável água
vem

com teu sabor de açúcar queimado em redor da noite
sonhar perto do coração que não sabe como tocar-te

[AL BERTO (1948 – 1997)]
(O Medo)

(in Poemário Assírio & Alvim 2014)

terça-feira, 12 de maio de 2015

AS ÁRVORES

Pois nós somos como troncos de árvore na neve. Temos a impressão de que assentam sobre ela, e que com um pequeno empurrão seríamos capazes de os deslocar. Não, não somos capazes, porque eles estão firmemente presos à terra. Mas – quem diria? – até isso é ilusório.

[FRANZ KAFKA (1883 – 1924)]
(Parábolas e Fragmentos)
(selecção, tradução e prefácio de João Barrento)

(in Poemário Assírio & Alvim 2014)

segunda-feira, 11 de maio de 2015

POEMA QUASE EPITÁFIO

Violentamente só
desfeito em louco
- nem um gato lunar
te arranha um pouco

Morreram-te na família
irmão mais velhos
Restam retratos de vidro
e espelhos

Entre as fêmeas bendita
não te quis
As outras matastes
(nem há sangue que te baste)

O chão do teu país
deu-te água e uma raiz
muitas pedras nas prisões

- Senhor demónio dos sós
quando ele morrer
onde o pões?

[LUIZA NETO JORGE (1939 - 1989)]
[Poesia (1960 - 1989)]
(organização e prefácio de Fernando Cabral Martins)
(in Poemário Assírio & Alvim 2014)

domingo, 10 de maio de 2015

[A DISTÂNCIA]

A distância é cava
senão cova   Escava
Os pais vigiam
dentro de um veio
no seio da terra

E os avós são reis
por detrás de um vidro
Do açúcar vem-lhes
a textura doce

mais antigos
mortos do que nós
mais vivos mais sós

como se fosse
um acidente
o pó

[LUIZA NETO JORGE (1939 - 1989)]
(Poesia)
(in Poemário Assírio & Alvim 2013)

sábado, 9 de maio de 2015

[ÀS VEZES]

Às vezes, em dias de luz perfeita e exacta,
Em que as cousas têm toda a realidade que podem ter,
Pergunto a mim-próprio devagar
Porque sequer atribuo eu
Beleza às cousas.

Uma flor acaso tem beleza?
Tem beleza acaso um fruto?
Não: têm cor e forma
E existência apenas.
A beleza é o nome de qualquer cousa que não existe
Que eu dou às cousas em troca do agrado que me dão.
Não significa nada.
Então porque digo eu das cousas: são belas?

Sim, mesmo a mim, que vivo só de viver,
Invisíveis, vêm ter comigo as mentiras dos homens
Perante as cousas,
Perante as cousas que simplesmente existem.

Que difícil ser próprio e não ver senão o visível?

[ALBERTO CAEIRO (FERNANDO PESSOA)]
(1888 – 1935)
(Poesia)
(edição de Fernando Cabral Martins e de Richard Zenith)

(in Poemário Assírio & Alvim 2013)

sexta-feira, 8 de maio de 2015

[NAS MADRUGADAS]

Nas madrugadas de segunda-feira
tinhas de regressar não sabíamos bem
a que fracção do tempo porque tudo se sobrepunha
e éramos forçados a deter
o instante não por ser
belo, apenas por ser água
onde nunca ninguém duas vezes entraria

[GASTÃO CRUZ (1941)]
(Fogo)
(in Poemário Assírio & Alvim 2014)