segunda-feira, 31 de dezembro de 2012

Sol...


Sol subiu; trabalho
Sol desceu; descanso
cave o poço e beba a água
cave o campo; como o grão
Poder imperial existe? e para nós o que é?

EZRA POUND (1885 – 1972) – Os Cantos
(tradução e introdução de José Lino Grunewald)

domingo, 30 de dezembro de 2012

CANÇÃO DE AMOR


A cabeça está onde o grilo canta
As faces são aquilo que os dentes hão-de morder
O lago está onde o amante se atira
Ao outro pela calada da noite
Os lábios estão onde está o sangue
Os olhos são o que os dedos prendem
Sabendo agora o que podia ter sido
Dirão os lábios o que os olhos viram?

PAUL BOWLES 81910 – 1999) – Poemas
(selecção e tradução de José Agostinho Baptista)

sábado, 29 de dezembro de 2012

EPITÁFIO TRANSMONTANO


Não receio morrer. Cegonha, se nunca foste à Tessália
Como é que sabes. Nem subir possa a boca nas antigas
Matemáticas – ali passou o Inverno, enroscada o
Suficiente para não ter frio, ou ser mordida:
< Mulher de Levi>.
GIL DE CARVALHO (1954) – De Quatro e Cinco

sexta-feira, 28 de dezembro de 2012

NOITE DE INVERNO

A tempestade tolda os ares,
A neve gira em torvelinho,
Ora como a besta a uivar,
Ora num choro de menino.
Ore revolve o colmo antigo
E gasto do nosso palheiro,
Ora nos bate ao postigo
Como tardio caminheiro.

Tristonha e escura choça velha,
Tão decrépito o nosso abrigo.
Querida velhinha, por que velas
Tu tão calada ao postigo?
Talvez te quebre de fadiga
A borrasca feia a rugir,
Talvez te enleies, minha amiga,
Sob o teu fuso a zumbir?

Por desespero, ó mais dilecta
Da minha jovem condição,
Bebamos; que é da caneca?
Seja alegre o coração.
Canta-me a da cotovia
Que além do mar vive em amor;
Canta a da donzela, como ia
Buscar água pelo alvor.

A tempestade tolda os ares,
A neve gira em torvelinho,
Ora como besta a uivar,
Ora num choro de menino.
Por desespero, ó mais dilecta
Da minha jovem condição,
Bebamos, que é da caneca?
Seja alegre o coração.

ALEKSANDR PÚCHKIN (1799 – 1837) – O Cavaleiro de Bronze e Outros Poemas
(tradução de Nina Guerra e Filipe Guerra)

quinta-feira, 27 de dezembro de 2012

O LAMENTO DE C_______________


Quão bela era a luz do céu,
Que anjos dos céus desceram
Quando a juventude era algo mais do que vinho
E o homem e a natureza pareciam divinos
Aqui senti, porém, que a juventude devia perecer.

  Aqui senti, porém, que a juventude devia perecer
Quão insubstancial parecia a terra,
A terra de Aladino! em cada avanço,
Ou ali ou aqui, um novo romance;
Jamais sonhei poderem desvanecer-se.

  E nada então tinha senão o seu valor,
A própria dor. Sim, prazer ainda e dor
Numa rápida reacção da vida fizeram
Uma disputa de um amante, feliz disputa
Na juventude que não volta mais.

  Mas não voltará a juventude?
Também para o seu leite de morte ele partiu,
E só me deixou para à noite despertar
Com um coração pesado, outrora leve?
Oh, junto à sua cabeça depositai – uma pedra!

HERMAN MELVILLE (1819 – 1891) - Poemas
(selecção, tradução e introdução de Mário Avelar)

quarta-feira, 26 de dezembro de 2012

- COLECÇÃO –


lago oculto
focas anidras
nádegas de mica
o confessionário plúmbeo
virgens encharcadas entre lençóis
uma águia alugada para a estação
uma pega a limpar ruas
os lagartos mergulhados num fulgor sem limites
a vérmina que abunda no sentido do negro do marfim
o ranho fiel ao nariz
a asma que vive nos vãos de escada
aranha, suja mulherzinha na tua teia
chegou o momento de descansar os ossos moídos
a banheira da Rainha arrematava-se pelo mais alto lance
lá para fora a galinha cozida e deixai entrar a minha gente agora

in Doze Nós Numa Corda
(poemas mudados para português por Herberto Helder)

terça-feira, 25 de dezembro de 2012

NATAL 2012

Cortinado corrido
deixando entrar do dia
a sua luminosidade,
vidro embaciado
disfarçando mal
as diferenças que no ar havia,
janela aberta apenas o suficiente
para se denotar uma certa
ansiedade,
e a renovação de um desejo
todos os anos, na mesma altura,
repetido.
Mas este ano parece
que o menino não aparece.
Andam, algures nos confins
do universo, uns seres, entretidos
com “coisas” que não são de sua
estima.
E o menino que já chora
não quer vir, para em pranto não
entrar.
E a mãe lhe diz: há quem
por ti espera, há quem
pela renovação vive, há quem
por ele, e por ele, se esmera.
E o menino, limpando as lágrimas
tristemente caminhando
por aí vem, trazendo possíveis
boas novas, a quem por ele
não tem desdém.
CARLOS SOUSA RAMOS (1956)

segunda-feira, 24 de dezembro de 2012

PRIMEIRA LUA DE INVERNO

I

Repousa em redor a pequena vila.
Às luzes que cruzam a rua
Juntam-se as lanternas de um fiacre.
Poluídos para alguns os frutos do dia,
Deixam o mercado agora ermo,
Sem uvas nem girassóis.
Ouve-se música através dos muros,
No jardim alguém tenta calar o apelo
De um amor recusado, ainda em chagas.
Mas na cascata a água, precipita-se,
Fresca num jorro rápido.

II

Acabou o Sol & o sino da tarde leva
Os deuses, um a um, a um passado provisório,
Donde irão emergir para o grande cisma
Do Inverno, o primeiro sobro do qual
Já se ouve subir os píncaros da serra.
Para a deusa branca chegou o fim do seu enigma,
A sua ruína coroa agora as ruínas do castelo:
Aqui morrem os deuses & as borboletas.
Rejeitados olhamos apenas,
Recíproco, um brilho no vazio.

M.S. LOURENÇO (1936-2009) – O Caminho dos Pisões

domingo, 23 de dezembro de 2012

CARTA DE AMOR

Um dia destes
vou-te matar
Uma manhã qualquer em que estejas (como de costume)
a medir o tesão das flores
ali no Jardim de S. Lázaro
um tiro de pistola e…
Não te vou dar tempo sequer de me fixares o rosto
Podes invocar Safo, Cavafy ou S. João da Cruz
todos os poetas celestiais
que ninguém te virá acudir
Comprometidos definitivamente os teus planos de eternidade
Adeus pois mares de Setembro e dunas de Fão
Um dia destes vou-te matar…
Uma certeira bala de pólen
mesmo sobre o coração

JORGE SOUSA BRAGA (1957) – O Poeta NU

sábado, 22 de dezembro de 2012

A ÁRVORE DE NATAL


A árvore de Natal
não é uma árvore
que foi cortada
é o pinheiro-bravo
a entrar pela janela
com as raízes enraizadas
na terra
do jardim
do bungalow
ADÍLIA LOPES (1960) – Dobra

sexta-feira, 21 de dezembro de 2012

ASSIM ERA NOS TEMPOS

Assim era nos tempos.
E as pequenas estrelas caem agora dos ramos das oliveiras,
Sombra bifurcada cai escura no terraço
Mais negra que o gavião pairando
                a quem não importa a tua presença,
O estampado da sua asa é negro no telhado
E o estampado desapareceu com o seu grito.
Por isso leve é o teu peso sobre Tellus
Tua marca não mais funda talhada
Teu peso menor que a sombra
Tu porém roeste através da montanha,
               Os Dentes de Cila menos aguçados.
Encontraste ninho mais suave que cunnus
Ou encontraste melhor descanso
Tens plantação mais funda, o ano da tua morte
Traz-te rebento mais temporão?
Penetraste mais fundo na montanha?
[…]

EZRA POUND (1885-1972) – Do Caos À Ordem
(tradução e prefácio de Luísa M.L.Q. Campos e Daniel Pearlman)

quinta-feira, 20 de dezembro de 2012

EM FRENTE DA MACIEIRA

Não morro antes de ter visto a vaca
no estábulo do meu pai,
antes de a erva acidular a minha língua
e o leite mudar a minha vida.
Não morro antes de o meu jarro estar cheio a transbordar
     e o amor da minha irmã me lembrar
como é bonito o nosso vale,
     onde  amassam a manteiga
e, na Páscoa, abrem marcas no toucinho…
     Não morro antes de a floresta mandar os seus temporais
e de as árvores falarem de verão,
     antes de a minha mãe ir pela rua com um lenço vermelho,
atrás do carro aos solavancos, no qual
     ela empurra a sua felicidade maças, peras, galinhas e palha…
Não morro antes de se fechar a porta por
     onde entrei,
em frente da macieira…

THOMAS BERNHARD (1931-1989) – Na Terra e no Inferno
(tradução de José A. Palma Caetano)

quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

NUMA RUA DA INFÂNCIA

A criança passeia na cidade
uma avestruz voraz segue os seus passos
É um domingo no Outono braços
nadam nas montras como se verdade

o mar de cinza fosse e a eternidade
da tarde anoitecida aos vis pedaços
de corpos irreais desse unidade
A criança recolhe os estilhaços

uma ave que marche segue o rastro
da pequena aventura Ah o passado
produzimo-lo tarde: uma criança

o interroga interrogando a dança
da feroz avestruz que sobre o vasto
campo do mundo a segue como antes

GASTÃO CRUZ (1941) – Crateras

terça-feira, 18 de dezembro de 2012

AMANTES


Abraços quentes, emoções gratificantes
Beijos desejados, minuciosamente pensados
Sem dificuldade, ternamente realizados
E o mundo do avesso se virou
No encontro daqueles dois amantes

Vontades que se afixam, olhares que se fixam
Mãos que se unem, personalidades que se fundem
Corpos que suam, seres que se juntam
E o mundo de repente entendeu
Porque no fim, nenhum dos dois se moveu

Existência de vivências
Nunca antes constatadas
Verdades questionadas, crenças abaladas
Morte anunciada de postura enraizada
E o mundo se transformou porque alguém amou.

            CARLOS SOUSA RAMOS (1956) – Sem Condizer

segunda-feira, 17 de dezembro de 2012

QUE DOS FRAGMENTOS ARCAICOS

Que dos fragmentos arcaicos nos chegam apenas pedaços de ouro
maduro que pulsam no escuro,
e é esse o seu único sentido:
de que não há mais nada:
fogos catódicos, olhos
sem pálpebras,
permanentes,
que nos fixam como se morrêssemos
pela sua beleza
desunida, autónoma, inconclusiva,
imortal,
mortífera.

HERBERTO HELDER (1930) – Ofício Cantante

domingo, 16 de dezembro de 2012

EMILY DICKINSON

Mesmo que pudesse
dizer tudo
não podia dizer tudo
e é bom assim.

ADÍLIA LOPES (1960) – Dobra (Poesia Reunida 1983-2007)

sábado, 15 de dezembro de 2012

JACOB E O ANJO

<First we feel, then we fall>>
JAMES JOICE

Há uma idade em que nos conhecemos
presos às paredes, cambaleantes
diante da noite sem fim

O menor movimento avizinha o fantasma
no escuro um de nós pode morrer
desces tu ou subo eu os degraus de uma lenda
um círculo interdito sobre a terra

Aperto contra ti a infelicidade dos meus braços
a navalha não do jogo, mas do rito
Tu porém inacessível
andes entre a dupla folha
de ouro

JOSÉ TOLENTINO MENDONÇA (1965) – O Viajante Sem Sono

sexta-feira, 14 de dezembro de 2012

(ORAÇÃO POPULAR À LUZ)

Arca benta fechada,
Corpo santo de Jesus,
Já cantam os galos,
Lá vem a luz,
Para salvar a minha alma,
Para sempre; ámen, Jesus!

In Rosa do Mundo – 2001 Poemas para o Futuro

quinta-feira, 13 de dezembro de 2012

AS HORAS

As horas de que tenho pena
São as que nunca viverei.
Astro, ‘standarte, azul, falena,
Manto de rei,

Miséria do lacónico auge,
Quando a ânsia foi grande e sangue.
Palácio fauce de leão langue.
A cascata de leve estruge

E entre áleas ou coberta a séries
De prantos por interromper,
Diverge a astros o dizeres
Que é certo morrer.

Por isso sonho alado, gala
Da tarde atónita e macia,
O rastro saqueou e opala
Sequência fria.
31.5.1917

FERNANDO PESSOA (1888 – 1935) – Poesia 1902/1917
(edição de Manuela Parreira da Silva, Ana Maria Freitas e Madalena Dine)

quarta-feira, 12 de dezembro de 2012

OS SONHOS

À memória de Ângel Crespo

Que são os sonhos?

Os sonhos são produções vulcânicas da memória, anunciações, a inquietação silenciosa dos mortos?

O paraíso e o inferno que os homens podem entrever como coisa sua, ínvia?

Ou serão o território dos trinta e três deuses védicos, deles e de todos os outros depois desaparecidos?

Sonhando, os loucos deixam de atormentar-se, e para os alucinados a vida será menos labiríntica, menos persecutória, será mais benévola, mais justa?

As transfigurações, os presságios, as deambulações sinuosas dos sonhos terão algo a ver com o trabalho poético?

E a poesia, doçura enigmática e interrogante, em busca do perene, do impossível, não se resume a uma espécie última, uma espécie incandescente de sonho?

ANTÓNIO OSÓRIO (1933) – A Luz Fraterna

terça-feira, 11 de dezembro de 2012

SENTADO NO PÓ

Sentado no pó do cru tronco
Como me sinto só e não me encontro
Mas ao ver o teu chegar
Como eu quero crer que te vais dar
E sob o sol escaldante que abrasa
Todo o meu olhar pedante se arrasa

E vindo tu toda nua
Desposada de qualquer querer
Distribuindo a brisa que é tua
E criando desejo para eu te ver
Fazes com que todo o meu ser
Que se encontra deveras distraído
Se arrepie e se desencadeie para te ter
Sem ficar arrependido

E vindo tu toda frágil
Sem qualquer força de presença
Não mostrando que podes ser ágil
E ludibriando a minha crença
Fazes com que o meu lânguido olhar
Que me quer dizer que sou o melhor
Em tudo
Seja a metamorfose do meu amar
Para que não possa ficar mudo

E vindo tu com vontade de me conhecer
E me ter
Sem pedir nada em permuta
Fazes com que eu
Sem qualquer disputa
Em homem me transforme

CARLOS SOUSA RAMOS

segunda-feira, 10 de dezembro de 2012

NOS BAIXIOS DO CETINJE

(canção popular)

Ó Cetinje – rio orgulhoso!
Dizias – não ter baixios.
Vim – para a beira das tuas margens,
E encontrei – um baixio, dois baixios, três baixios…
Num campeavam – os convidados de uma boda
Rapazes e raparigas – brincavam no segundo.
No terceiro – um irmão e uma irmã,
A irmã bordava – mangas para o irmão,
O irmão cosia – fino corpete para a irmã.
A irmã diz-lhe: - <Cose as mangas, irmão,
Fá-las estreitas – que uma maça não passe,
Que mão de homem – não possa lá entrar!>
<Querida irmã – respondeu o irmão,
Se alguma vez – mão de homem se aproximar
O teu mimoso corpete – abrir-se-á por si.>

Ó Cetinje – rio orgulhoso,
Que dizias não ter baixios!

In Rosa do Mundo – 2001 Poemas para o Futuro
(tradução de Maria Jorge Vilar de Figueiredo)