sábado, 30 de junho de 2012

"Não pra mim..."

NÃO PRA mim mas pra ti teço as grinaldas
Que de hera e rosas eu na fronte ponho.
    Para mim tece as tuas
    Que as minhas eu não vejo.

Um para o outro, mancebo, realizemos
A beleza improfícua mas bastante
    De agradar um ao outro
    Plo prazer dado aos olhos.

O resto é Fado que nos vai contando
Pelo bater do sangue em nossas frontes
    A vida até que chegue
    A hora do barqueiro.
30 - 7 - 1914
RICARDO REIS (FERNANDO PESSOA) (1888 – 1935) – Poesia
(edição de Manuela Parreira da Silva)

sexta-feira, 29 de junho de 2012

LITORAL

Pouco me resta para dizer,
nesta praia onde vagueio, ao anoitecer,
e as lâmpadas se acendem ao longe,
no porto em frente,
como se procurassem desesperadamente
um crepúsculo de incenso queimado e
alecrim.
Mas uma pancada surda,
Talvez um remo no casco dos navios,
leva-me a outras águas onde podia
ter sido feliz,
onde muito além, depois das chuvas,
talvez cantasse o doce pássaro azul.

JOSÉ AGOSTINHO BAPTISTA (1948) – Anjos Caídos

quinta-feira, 28 de junho de 2012

ACORDAR TARDE

todas as flores murchas que alguém te ofereceu
quando o rio parou de correr e a noite
foi tão luminosa quanto a mota que falhou
a curva – e o serviço postal não funcionou
no dia seguinte

procuras ávido aquilo que o mar não devorou
e passas a língua na cola dos selos lambidos
por assassinos – e a tua mão segurando a faca
cujo gume possui a fatalidade do sangue contaminado
dos amantes ocasionais – nada a fazer

irás sozinho vida dentro
os braços estendidos como se entrasses na água
o corpo num arco de sal tenso simulando
a casa
onde me abrigo do mortal brilho do meio-dia

AL  BERTO (1948 – 1997) – O Medo

quarta-feira, 27 de junho de 2012

A UM DEUS SURDO

Ó quem me dera ter outra vez vint’anos
navegar no ignoto sem portulanos
o peito  feito para os da vida enganos
era sensacional ó hermanos

quem dera o brandy com castelo
o dedo ao arrepio de pêlo
o romanticismo do desvelo
e tudo isto fingindo um grande anelo

quem dera agora uma vez mais
o rápido de Irún no cais
a solicitude quente dos pais
ai eu tirando de ouvido muito ais

ó quem dera e outra vez viera e dera
a ruminante paciência que há na espera
o mistério lento da Primavera
o emblema desenhado pela namorada: uma hera.

FERNANDO ASSIS PACHECO (1937 – 1995) – A Musa Irregular

terça-feira, 26 de junho de 2012

CANÇÃO DO POENTE

À distância contemplei o mar
   Pousando o queixo sobre a minha mão,
Quando o sol dá, no poente a findar,
   Um sentido místico de imensidão.
E uma estranha pena, um medo senti,
   Um certo desejo, qual súbito amar,
   De alguma coisa que não está aqui
   E que nunca eu poderei alcançar.
ALEXANDER SEARCH, Poseia
(edição e tradução de Luísa Freire)

segunda-feira, 25 de junho de 2012

O RESTO É SILÊNCIO (QUE RESTO?)

Volto, pois, a casa. Mas a casa,
a existência, não são apenas coisas que li?
E o que encontrarei
se não o que deixo: palavras?

Eu, isto é, palavras falando,
e falando me perdendo
entre estando e sendo.
Alguma vez, quando

havia começo
e não inércia,
quando era cedo
e não parecia,

as minhas palavras puderam estar
onde sempre estiveram:
no apavorado lugar
onde sou o silêncio.

MANUEL ANTÓNIO PINA (1943)
Nehuma Palavra e Nenhuma Lembrança

domingo, 24 de junho de 2012

(SANTOS)/(?)

ALGUMA vez a festa há-de vir!
Santo António, tu que tanto sofreste,
São Leonardo, tu que tanto sofreste,
São Vito, tu que tanto sofreste!

É a hora das nossas preces, a hora dos que oram,
hora da música e da alegria!
Aprendemos a singeleza,
cantamos no coro das cigarras,
comemos e bebemos,
os gatos magros
roçam-se pela nossa mesa;
até a hora da missa de vésperas
seguro-te na mão
com os olhos,
e um coração tranquilo e ousado
sacrifica-te os seus desejos.

Mel e nozes para as crianças,
redes cheias para os pescadores,
fertilidade para os pomares,
lua para o vulcão, lua para o vulcão!

[…]
INGEBORG BACHMANN (1926 – 1973)
O Tempo Aprazado – Poemas (1953 – 1967)
(selecção, tradução e introdução de João Barrento e de Judite Berkemeier)

sábado, 23 de junho de 2012

O MERCADO DOS GNOMOS

O MERCADO DOS GNOMOS
( de Goblin Market and Other Poems, 1862)

De manhã e à tarde
As donzelas ouviam os gnomos apregoar:
<<Venham comprar os frutos do nosso pomar
Venham comprar, venham comprar:
Maças e marmelos,
Limões e laranjas,
Cerejas inteiras,
Melões e groselhas,
Pêssegos aveludados e sumarentos,
Amoras de cabeça escura,
Vacinos livres e selvagens,
Maçãs bravas, bagas rudes
Ananazes, amoras silvestres
Alperces, morangos; --
Amadurecidos juntos
Em tempo veranil, ..
Manhãs que vão passando,
Belas tardes que voam;
Venham comprar, venham comprar:
As nossa uvas vindas de vindimar,
Romãs grandes e graciosas,
Tâmaras e abrunhos agudos,
Peras raras e rainhas-cláudias,
Damascos e arandos,
Provem e saboreiem
Framboesas e ribésias
Bérberis brilhantes como o fogo,
Figos de encher a boca,
Limas vindas do Sul,
Doces à língua sãs à vista;
Venham comprar, venham comprar.>>

CHRISTINA GEORGINA ROSSETTI (1830 – 1894)
in Os Pré-Rafaelitas – antologia Poética
(prefácios e tradução de Helena Barbas)

sexta-feira, 22 de junho de 2012

O BARQUEIRO DE CONSTÂNCIA

… e com a fome ninguém se meta!,
disse o barqueiro aproando ao peixe
que, sobre brasas, virado, revirado,
da margem o tocava para almoçar.

ALEXANDRE O’NEILL (1924 – 1986) – Poesias Completas
(introdução e organização de Miguel Tamen)

quinta-feira, 21 de junho de 2012

TARIQAH

Confiar no inefável
Ser amigo de Deus
Apreender o indizível com palavras repetidas ao ritmo do coração.

E manter as cinco orações diárias, às horas prescritas,
A fim de conversar com Deus de coisas práticas

ANTÓNIO BARAHONA (1939)
O Sentido da Vida É Só Cantar

quarta-feira, 20 de junho de 2012

A LUZ DO MUNDO

          A borboleta dança com as nuvens. O esquilo foge, gentil,
para dentro da árvore. O monge pendura a harpa no cipreste.
O cavalo bebe, num rio de névoa, a lua.

MÁRIO RUI DE OLIVEIRA (1973) - O vento da Noite

terça-feira, 19 de junho de 2012

Quotidiano

Caminha com passo apressado
a beleza que me deixa extasiado
e o mundo se desvanece
num desejo que não acontece.

Olhar sem entender
traz-nos o vazio do ser.

CARLOS SOUSA RAMOS (1956) - Quotidiano (50/51)

segunda-feira, 18 de junho de 2012

SAGRAÇÃO

SAGRAÇÃO de Enki-Du por sua mãe Ninsun:
A ti que não és raça dos cabeças negras
A ti ponho no chão de Egalmah
E ponho em ti o tirso do amável
E te dou nome Soldado de Anu
E te dou nome Pedra de Guilgamesh

Como o leão que na grande corrida mantém a cabeça imóvel
Sê barco do meu filho no mar perigoso
Na água a que não conhecemos o fundo
Na montanha do cedro a quem nunca ninguém viu a altura
Nos sete brilhos de Humbaba, causa de tido o mal.

EPOPEIA DE GUILGAMESH (C. SÉC. XXV A.C.)
in Rosa do Mundo – 2001 Poemas para o Futuro (tradução de Mário Cesariny)

domingo, 17 de junho de 2012

SE A CADA...

SE A CADA aparição perdes um pouco
do fluido astral que te percorre as veias,
e a carne te escurece quando tocas
a alma adormecida dos humanos;
se te tornas mortal quando acontece
um de nós acordar e não ter medo
de te dar a beber água terrestre,
prefiro que te guardes nesse espaço
onde a noite penetra levemente
pelas fendas das árvores abertas,
e me abandones como quem se esquece
de um livro velho no esplendor da praia.
Um dia hei-de surgir, num sonho teu,
e perder eu a vida para ver-te.

ANTÓNIO FRANCO ALEXANDRE (1944) – Duende

sábado, 16 de junho de 2012

GAZEL DO AMOR DESESPERADO

A noite não quer vir
Para que tu não venhas
Nem eu possa ir

                Mas eu irei
Ainda que um sol de lacraus me coma as fontes
Mas tu virás
Com a língua queimada pela chuva de sal

                O dia não quer vir
Para que tu não venhas
Nem eu possa ir

                Mas eu irei
Entregando aos sapos o meu cravo mordido
Mas tu virás
Pelas turvas cloacas da obscuridade

Nem a noite nem o dia querem vir
Para que por ti morra
E tu morras por mim.

FREDERICO GARCIA LORCA (1898 – 1936)
Qual É a Minha ou a Tua Língua – Cem poemas de amor de outras línguas
(organização de Jorge Sousa Braga)

sexta-feira, 15 de junho de 2012

TENHO uma pressa danada

TENHO uma pressa danada de ir a lado nenhum, com um zunzum
nas orelhas assobio perto de ti. Não se deve ver uma cara
tanto tempo, o assobio partir-se-á e já a dobrar a esquina
no retrovisor sinto que deixei atrás de mim uma miragem.

Insecto molhado, sacodes as asas da chuva de molha-parvos
e obrigo-te a vir comer à minha mão, um excelente dia
para passear, falar, conversar de braço dado, dar exercício
ao raciocínio, movimentar um pouco as pernas, esbracejar.
A pala da mão contra o sol inscreve beleza no retrato
mas mais não faz do que proteger-se do teu olhar acutilante.

Quando nos saites pornográficos para velhos as dentaduras
com mãos trémulas depositadas em copos de água de vidro
nos fazem perceber as cenas seguintes do verdadeiro sexo
oral, uma tristeza irrompe sem controlo pelas minhas lágrimas
dentro e quero ver cada vez mais para desaprender.

HELDER MOURA PEREIRA (1949) – Lágrima

quinta-feira, 14 de junho de 2012

TAL VAI

- TAL VAI o amigo, com amor que lh’eu dei,
come cervo ferido de monteiro del-Rei;

tal vai o meu amigo, madre, com meu amor,
come cervo ferido de monteiro-maior.

E se tal vai ferido, irá morrer al mar;
si fará meu amigo, se eu del non pensar.

- E guardade-vos, filha, ca ja m’eu atal vi
que se fezo coitado por huaanhar de mim;

e guardade-vos, filha, ca já m’eu vi atal
que se fezo coitado por de mim guaanhar.
PERO MÔOGO (? - ?) in Do Cancioneiro de Amigo
(Stephen Reckers e Helder Macedo)

quarta-feira, 13 de junho de 2012

Santos populares

NO DIA de Santo António
Todos têm razão.
Em São João e São Pedro
Como é que todos rirão?
FERNANDO PESSOA (1888 – 1935) – Quadras
(edição de Luísa Freira)

terça-feira, 12 de junho de 2012

PERDIDO DESEJO

Cada linha do corpo
formatado
deixa o meu
descontrolado.

O olhar
forte
disfarçadamente pequenino
me transforma de novo
em menino.

A cada momento
de um aleatório encontro
se perfila a sensação
de uma desejada atracção.

E o eu
na angústia perdido
por uma, que tarda, autorização
se refugia nos meandros
de uma eufórica sensação.

Envelhecendo contente
porque, mesmo que não possa vir a ter
ninguém o pode proibir de rever.

Ah!
E como imagino sonhando.
CARLOS SOUSA RAMOS (1956) - inédito

segunda-feira, 11 de junho de 2012

BIC CRISTAL

BIC CRISTAL preta doendo nas falangetas,
papel sobre a mesa,
a luz que vibra por cima, por baixo
a cadeira eléctrica que vibra,
e é isto:
electrocutado, luz sacudida no cabelo,
a beleza do corpo no centro da beleza do mundo:
pontos de outro nas frutas,
frutas na luz escarpada,
clarões florais atrás de paredões de água,
água guardada no meio das fornalhas
- isto que, sentado eu na minha cadeira eléctrica,
entra a corrente por mim adentro e abala-me,
e com perícia artífice deixa no papel
o nexo estilístico entre
o terso, vívido, caótico e doce:
e o escrito, o carbonífero, o extinto,
o corpo
HERBERTO HELDER (1930)
Ofício Cantante

domingo, 10 de junho de 2012

PENSAMENTOS

PENSAMENTOS, que agora novamente
Cuidados vãos em mim ressuscitais,
Dizei-me: ainda não vos contentais
De terdes quem vos tem tão descontente?

Que fantasia é esta, que presente
Cada hora ante meus olhos me mostrais?
Com sonhos e com sombras atentais
Quem nem por sonhos pode ser contente?

Vejo-vos, pensamentos, alterados
E não quereis, de esquivos, declarar-me
Que é isto que vos traz tão enleados?

Não me negueis, se andais para negar-me;
Que, se contra mim estais alevantados,
Eu vos ajudarei mesmo a matar-me.

LUÍS DE CAMÕES (1524? – 1580) – Sonetos de Luís de Camões
(escolhidos por Eugénio de Andrade)

sábado, 9 de junho de 2012

NUNÁLVARES PEREIRA

Que auréola te cerca?
É a espada que, volteando,
Faz que o ar alto perca
Seu azul negro e brando.

Mas que espada é que, erguida,
Faz esse halo no céu?
É Excalibur, a ungida,
Que o Rei Artur te deu.

Sperança consumada,
S. Portugal em ser,
Ergue a luz da tua espada
Para a estrada se ver!
FERNANDO PESSOA (1888 – 1935) – Mensagem
(edição de Fernando Cabral Martins)

sexta-feira, 8 de junho de 2012

PORTUGAL

PORTUGAL é a Paisagem e a Saudade.

TEIXEIRA DE PASCOAES (1877 – 1952)
Senhora da Noite, Verbo Escuro (apresentação de Mário Garcia)

quinta-feira, 7 de junho de 2012

PASTORAL

Quando era mais jovem
tinha a certeza
que devia fazer algo da minha vida.
Agora, mais velho,
caminho por vielas
admirando as casas
dos mais pobres:
telhados desengonçados
pátios cheios de
velho arame de capoeira, cinzas,
móveis desconjuntados;
as cercas e os anexos
construídos com aduelas
e tábuas de caixotes, todos,
com alguma sorte,
sujos de um verde-azulado
cuja patina
me agrada mais
que qualquer cor.

                   Ninguém
acreditará que isto
seja tão importante para a nação.

WILLIAM CARLOS WILLIAMS (1885 – 1963) – Antologia Breve
(selecção e tradução de José Agostinho Baptista)

quarta-feira, 6 de junho de 2012

SOBRE O CAMINHO

Nem o branco fogo do trigo
nem as agulhas cravadas na pupila dos pássaros
te dirão a palavra.

Não interrogues não perguntes
entre a razão e a turbulência da neve
não há diferença.

Não colecciones dejectos o teu destino és tu.

Despe-te
Não há outro caminho.
EUGÉNIO DE ANDRADE (1923 – 2005)
In A Perspectiva da Morte 20 (-2) Poetas Portugueses do Século XX
(selecção e prefácio de Manuel de Freitas)

terça-feira, 5 de junho de 2012

SORRI

Quando olhas em frente
E nada está na tua mente
O que te faz parar
E não querer ficar
Pois tens medo de procurar
Com um ao lado olhar
Quem te possa resolver
Essa sensação de não ter

Sorri
Pois estarei ao teu lado
E porque vi
O que ainda não está acabado

Quando te é difícil amar
Pois não consegues afastar
Quem tanto mal te quer dar
E não consegues acabar
Com o teu chorar

Sorri
Pois estarei ao teu lado
E porque vi
O que ainda não está acabado

Quando já não crês
Que possas ter paciência
Pois tanta miséria vês
Sem razão de existência
Quando já não tens força
Porque já não és moça
Para mais uma desilusão
Dos que não têm coração

Sorri
Pois estarei ao teu lado
E porque vi
O que ainda não está acabado
CARLOS SOUSA RAMOS (1953)
in Ode À Vida e Outros Poemas