quarta-feira, 31 de outubro de 2012

CASA DAS SEMENTES


É triste não possuir uma casa de sementes.
Não adianta amar essas partículas ali ociosas,
nem desejar que nidifiquem sem granizo
e irrompam como a chama de uma vela.

É triste pagar um preço pelo que há-de nascer,
que o bersim perca a cor alazã penetrando na terra
e o trevo da Pérsia alimente a boca das reses.

É triste que não recusem essa densa, pródiga,
obstinada servidão, a vitalidade apaixonada pelo sol,
e não façam, como um camponês, as suas contas,
exigindo a Deus e aos homens o salário da maquinação.

ANTÓNIO OSÓRIO (1933)
Casa das Sementes – Poesia Escolhida

terça-feira, 30 de outubro de 2012

O TEMPO

O tempo perfura portas cerradas
biombos, tabiques e lapsos
um rangido de ferrugem velha
a mercadoria imaginária que tenhamos

insectos erram de planta em planta
um feto desdobra as grandes folhas
estranhamente espaçosas
nesta estação

A lua sobe no céu
lavado de fresco pelas últimas trovoadas

JOSÉ TOLENTINO MENDONÇA - Estação Central

segunda-feira, 29 de outubro de 2012

QUÃO MÍSEROS TEUS ÓDIOS


[…]
                        Quão míseros teus ódios
Criados na falsidade,
                        Põe abaixo tua vaidade,
Precoce em destruir, mesquinho em caridade,
Põe abaixo tua vaidade
                        Digo põe abaixo.

Porém ter feito em vez de não fazer
                        isto não é vaidade
Ter, com decoro, batido
Que um Blunt abrisse
                        Ter captado no ar a tradição mais viva
ou de um belo olho velho a flama invicta
Isto não é vaidade.
            Aqui a falha está em não ter feito,
tudo na timidez que vacilou…

            EZRA POUND (1885 – 1972) – Os Cantos
(tradução e introdução de José Lino Grunewald)

domingo, 28 de outubro de 2012

GEOGRAFIA EM PÓLVORA...


Geografia em pólvora, solitária brancura
deflagrada, é a flor das lâmpadas, poeira
a fremir por canos finos, largura escoada,
imprime-se o espaço em transe,
pulmões na camisa, por ser devagar,
por o mel escorrer, distraído, frio,
ou fervendoOLVORA
na cabeça, sempre a porejar da pedra,
lento no rosto que a luz colérica varre,
sempre na atenção pendida,
ou grãos luzentes toda a noite no fundo
branco,
fechado, o mel, no limiar,
a casa alagada, flutuante, acesa,
e fosforescem cartas, mapas, golfada de seda abrupta
em cima do estremecimento do meio-dia,
canais de mel, os androceus, manchas queimando,
sobre as pautas desdobradas de baixo para cima

HERBERTO HELDER (1930) – Ofício Cantante

sábado, 27 de outubro de 2012

EU QUERO, EU QUERO


De boca aberta, o deus recém-nascido
imenso, calvo, embora com cabeça de criança,
gritou pela teta da mãe.
Os vulcões secos estalaram e cuspiram,

a areia esfolou o lábio sem leite.
Gritou então pelo sangue paterno
que agitou a vespa, o tubarão e o lobo
e veio engendrar o bico do ganso.

De olhos secos, o inveterado patriarca
Ergue seus homens de pele e osso;
farpas sobre a coroa de fio dourado,
espinhos nas hastes sangrentas da rosa.

SYLVIA PLATH (1932 – 1963) – Pela Água
(tradução de Maria de Lurdes Guimarães)

sexta-feira, 26 de outubro de 2012

ONDE COAXAVAM RÃS

Onde coaxavam rãs
em charcos de juncos remexidos por javalis
atoladas de água até aos joelhos
é que elas se despiam

à noite as rememorava
sacudindo as crinas
e escouceando
contra a impertinência de algum insecto
quando se baixam e levam as mãos aos sovacos
e a pouca água escorre pelo abdómen

toda a minha vida desejei aquela água
que acaba por se perder entre coxas e juncos

penso que o Pirico se concentrava então no mata-ratos
e olhava os animais com um carinho suspeito.

MANUAL AFONSO COSTA (1949) - Os Últimos Lugares

quinta-feira, 25 de outubro de 2012

A VIDA É...


A vida é uma vitória constante. Cada minuto da vida é
preciso arrancá-lo às mãos da morte.

TEIXEIRA  DE PASCOAES (1877 – 1952) – Senhora da Noite, Verbo Escuro
(apresentação de Mário Garcia)

quarta-feira, 24 de outubro de 2012

LEVANTA-TE E OBEDECE


Levanta-te e obedece à criança que foste
vai pelo deserto da idade onde a mentira
comendo a paisagem se expande dentro
destas pobres imagens desmanteladas

o voo das infelizes aves desprende-se  da terra
onde o corpo guardou o remoto canto  das luas
dos limos das areias e das primeiras águas

abre agora as pálpebras no quarto escuro
acorda o branco tigre pelo sangue terno do sono
não tenhas medo do dilúvio
onde o rapaz cresce deixa o cortante dia
entornar-se luminoso como um punhal

AL BERTO (1948 – 1997) – O Medo

terça-feira, 23 de outubro de 2012

A IDADE


Quem de forma justa e sagrada
Passa a vida,
Docemente alimentando-lhe o coração,
Longa vida criando,
A esse acompanha-o a esperança, que
À maioria dos mortais
Rege a tão versátil opinião.

Uma das mais belas imagens da vida, o modo como os costumes inocentes preservam o coração vivo, de onde nasce a esperança; esta concede então também à simplicidade um florescimento, com as suas diversas tentativas, e torna ágil o sentido, e tão longa a vida, na sua demora precipitada.

FRIEDRICH HOLDERLIN (1770 – 1843) – fragmentos de Pindaro
(tradução, notas e posfácio de Bruno C. Duarte)

segunda-feira, 22 de outubro de 2012

TEORIA DAS CORDAS

Não era isso que eu queria dizer,
queria dizer que na alma
(tu é que falaste da alma),
no fundo da alma e no fundo
da ideia de alma, há talvez
alguma vibrante música física
que só a Matemática ouve,
a mesma música simétrica que dançam
o quarto, o silêncio
a memória, a minha voz acordada,
a tua mão que deixou tombar o livro
sobre a cama, o teu sonho, a coisa sonhada;
e que o sentido que tudo isto possa ter
é ser assim e não diferentemente,
um vazio no vazio, vagamente ciente
de si, não haver resposta
nem segredo.
MANUEL ANTÓNIO PINA - Atropelameto e Fuga

domingo, 21 de outubro de 2012

SÉTIMO DIA

Voltámos, um a um, da tua morte
para a nossa vida como quem regressa a casa
de uma longa viagem. para trás ficaram recordações, países
e agora é como se te tivéssemos sonhado.

A voz que, distante da escuridão, suspendemos
quando se desmoronou o mundo para o fundo de ti
erguê,o-la de novo para os afazeres diurnos
e para as horas comuns.

ainda ontem estávamos sozinhos diante do Horror
e já somos reais mais uma vez!
A própria dor adormeceu no nosso colo
como um animal de companhia.
(25/06/01)
MANUEL ANTÓNIO PINA -  Atropelanetno de Fuga

sábado, 20 de outubro de 2012

NA HORA DO SILÊNCIO SUPREMO

Não haveria roubo, e há só o roubo,
há só a música, é lá que tudo ondeia...
Já li tudo, já fiz tudo (quem?).
Regresso, pois, à minha solidão.

Ouvir-me-eis até ao infinito.
Nós só falamos para nós próprios
e o tempo não existe, nem os outros.

Porque está tudo parado e aquele que escreve
é também eternamente escrito.
O seu passado é o Futuro de tudo,
ele a sombra de tudo o que há-de vir.

MANUEL ANTÓNIO PINA  -  Aquele Que Quer Morrer

sexta-feira, 19 de outubro de 2012

ALGUNS PROVÉRBIOS E NÃO


Pão a cozer – menino a ler
Mulher francesa – toalha na mesa
Vinho no copo – bandeira no topo
Menino esperto – Barquinho en el puerto
Homem pelintra – queijadas de Sintra
Neo-realista – ó ver a lista
Comida no papo – ária de sapo
Grande caçada – lua encarnada
Mão de três dedos – longos segredos
Gente que berra – marinheiro em terra
Mesa de pinho – carapauzinho
Água a correr – é de endoidecer
Muitos aviões – coçam-se os tufões
Homem roubado – boi encarnado
Primo penetra – etc etc
Enterocolites – Frederico Nites
Rato esquimó – Eduardo
Tabaco havano – extraordinariamente bacano
Americana  - farafangana
Peles de coelho – vício velho
Mar agonie – assim é que é
Meretriz nua – roupinho fua
Pevide a ler – não pode ser
General Franco – sal tim tim banco
Láráritutátázting – coistanding

MÁRIO CESARINY (1923 – 2006) – Antologia do Cadáver Esquisito

quinta-feira, 18 de outubro de 2012

OS SONHOS...


        Os sonhos são como a tradução para uma língua de coisas
intraduzíveis de outra; ou como a transposição para linguagem
- forçosamente confusa ou complicada – de sentimentos vagos
ou complexos, que a redacção normal não pode comportar.

FERNANDO PESSOA (1888 – 1935) – Aforismos e Afins
(edição e prefácio de Richard Zenith, tradução de Manuela Rocha)

quarta-feira, 17 de outubro de 2012

MEMÓRIA AO ABANDONO


Memória ao abandono
a válvula do sono
aberta.
Desdobra panos
hélice, ela
a grande borboleta
se é por pousar
já pousou –
despejando o vento
na abertura do vulcão
encaminhando a lava
no sentido giratório.

Antes
tive medo de ter sono
agora
é planeta a planeta.

SÉRGIO GODINHO (1945) – O Sangue Por Um Fio
(desenho de Tiago Manuel)

terça-feira, 16 de outubro de 2012

SOU GÉMEO DE MIM


Sou gémeo de mim
O que sou é
Distância.
Estou sentado sobre os meus joelhos
Separado.
Aquilo que une
É um rumor.
Não descanso. Sou urgência
De outro sítio. E pudesse velar-me
Longe
Dos homens como se neles
Adormecesse.

DANIEL FARIA - Poesia

segunda-feira, 15 de outubro de 2012

METÁFORA


Escolho o silêncio assunto antigo para
falar deste domingo: descrevê-los
o silêncio o domingo será como
falar da escuridão e que metáfora
mais certa se as há certas, para a ínfima
luz própria metafórica do dia

A tua voz então vem como nave
a si mesma sulcar-se, na penumbra
tornando-se, não sei se mais igual
ou mais diversa do escuro sentido
do sentido, o tema interrompendo
do poema: o silêncio o domingo.

GASTÃO CRUZ (1941) A Moeda do Tempo

domingo, 14 de outubro de 2012

AS SENHORAS DE CAMBRIDGE


As senhoras de Cambridge que vivem em almas mobiladas
são desgraciosas e têm pensamentos confortáveis
(e também, com as bênçãos protestantes da igreja
as filhas, inodoros e informes espíritos)
elas acreditam em Cristo e Longfellow, ambos mortos,
estão invariavelmente interessadas em tantas coisas –
neste instante em que escrevo ainda é possível encontrar
prazenteiros dedos tricotando para o serão os Pólos?
talvez. Enquanto rostos permanentes recatadamente debatem
o escândalo da Sra. N e do professor D
… as senhoras de Cambridge não querem saber, sobre
Cambridge se por vezes na sua caixa
cor de alfazema e sem esquinas, a
lua se agita como um resto de rebuçado zangado.

E. E. CUMMINGS (1894 – 1962) -  livrodepoemas
(tradução, introdução e notas de Cecília Rego Pinheiro)

sábado, 13 de outubro de 2012

ESCUTAS-ME


Filha da voz, de costumes
Breves – entreaberta – escutas
A moreia por uma secção de canas.
O hipocampo nas constelações

Frias – reparte seu perpétuo
Almanaque. Até muito tarde
Falas. Depois, adormeces.
1 … 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8. Em oito
Partes.
GIL DE CARVALHO (1954) – De Quatro e Cinco

sexta-feira, 12 de outubro de 2012

O AZUL


Do eternamente Azul a serena ironia
Abate, indolentemente bela como as flores,
O poeta impotente que o seu génio maldiz
Ao longo de um deserto sobre a aridez das Dores.

Furtivo, olhos fechados, sinto-o bem que remira
Com o terror intenso dum remorso por dentro,
A minha alma vã. Onde fugir? Delírio
De que noite lançar, farrapos, ao desprezo?

Nevoeiros, subi! Vertei as cinzas mornas
Com remendos de bruma esparsos pelos céus
Que afogará o charco lívido dos outonos
E construí um largo e silencioso tecto!

E tu, sai dos letais paúis e arrepanha,
Ao cercarem-se, a lama e os pálidos caniços,
Caro Tédio, a tapar com a mão jamais lassa
Os buracos azuis que as aves más abrirem.

[…]

STÉPHANE MALLARMÉ (1842 – 1898) – Poesias Lidas por Fernando Pessoa
8tradução e prefácio de José Augusto Seabra)

quinta-feira, 11 de outubro de 2012

NO MATO É MORTO UM VEADO


No mato é morto um veado
Coberto de juncos brancos:
Há uma rapariga em flor
Um belo homem a seduz.

No bosque troncos de carvalho
No mato, morto, um veado:
Com juncos brancos, ata-o bem.
Lá está ela – bela como jade!

<Devagarinho – gentilmente!
Não estrague a faixa – à cintura,
Não faça ladrar o cão!>

SHIJING Livro dos Cantares 8(~1200~~1600)
In Uma Antologia de Poesia Chinesa do Shijing a Lu Xun
- segundo milénio antes da era comum – século xx
(por Gil de Carvalho)

quarta-feira, 10 de outubro de 2012

CADERNO AZUL


I

Não é que não pense no fim do mês
até já pus o íman no contador
angustia-me tanta energia invisível
penso no fim do mês e da vida
e não sei o que me dói mais
os olhos abertos da minha filha
esperam saber como perguntar
o teu pai filha ainda espera respostas
ou como construir as perguntas certas
esvai-se a casa e eu com ela
preocupado com as respostas
com as sobras das perguntas
enredo as palavras e embalo-as.

CARLOS ALBERTO MACHADO (1954)
Registo Civil – poesia reunida 200-2006

terça-feira, 9 de outubro de 2012

IT’S TIME TO BE CLEAR


Os que falam de mim dizem que sou pobre
Existo à maneira de uma arvora
Tenho diante e atrás de mim a noite eterna
Vacilo, duvido, resvalo
E sei: a maior parte das vezes o amor nasce do erro
transcreve-se a azul ou a negro
sobre passagens, casas inacabadas, alturas remotas

Observá-lo apenas serve
para tornar contundente a sua forma nunca exactamente igual
a sua incrível velocidade destacada no meio do nada
enquanto a noite se desmorona
sempre mais bela

JOSÉ TOLENTINO MENDONÇA (1965) – Estação Central (2012)

segunda-feira, 8 de outubro de 2012

O CANTO DO MELRO


Da ponta do bico brilhante e amarelo
Da ave pequena soltou-se um trinado.
De dentro de um ramo de folhas doiradas
O melro lança o seu cantar pelas águas do lago.

ANÓNIMO (SÉCS. VIII – IX)
in Rosa do Mundo – 2001 Poemas para o Futuro
(tradução de José Domingos Morais)

domingo, 7 de outubro de 2012

A PALAVRA-ESCRITA


A palavra-escrita
é um labor arcaico:
sulca enigmas
venda e desvenda
o sentido do gesto

É uma imagem detida
recolhida do mais fundo cinema íntimo
onde o verdadeiro
é um ser invisível

O cinema do mundo está aí
onde houver ilusão
onde houver vontade de ver
mesmo que seja só o nada.

ANA HATHERLY (1929) – O Pavão Negro
(prefácio de Paulo Cunha e Silva)

sábado, 6 de outubro de 2012

A CASA DEVASTADA


Em pedaços o vaso rupestre jaz,
   Seus elos de dança desfeitos,
E, junto a ele, sarças definham,
   Abafada fonte de sol!
A aranha no loureiro a teia tece,
   A erva daninha exila a flor:
E, qual estufa, o busto de Apolo
   Gera cal para a torre de Mamona.

HERMAN MELVILLE (1819 – 1891) - Poemas
(selecção, tradução e introdução de Mário Avelar)

sexta-feira, 5 de outubro de 2012

SOB UMA PALMEIRA...


Sob uma palmeira branca
à beira do ribeiro, no caminho curto,       
‘scruto o sânscrito da água

ANTÓnIO BARAHONA (1939) – O Sentido da Vida É Só Cantar

quinta-feira, 4 de outubro de 2012

ASSIM COMO O TEMPO PASSA


Assim como o tempo passa
já posso ser o que sou
breve chuvisco de tarde
nublado pela manhã
sol em neve declinado
seco mar fresca aridez
Não deixo nem testamento
nem memória do que vi
as vozes que me habitaram
os corpos que me queimaram
não sei que sorte tomaram
nem que levaram de mim
É certo, julgamos sempre
olhar de frente o futuro
mas o que vemos é só
um braço do rio parado
muro de gruta pintado
a fazer vez de presente
Na linha do horizonte
perdeu-se outrora um navio
em terra fiquei deixado
ferido de sangue frio
de mãos e pés amarrado
à lembrança, mas de quê?
[…]

ANTÓNIO FRANCO ALEXANDRE (1944) – Uma Fábula