quinta-feira, 31 de maio de 2012

COMO ADÃO AO AMANHECER

Como Adão ao amanhecer,
Saio de casa renovado pelo sono.
Contempla-me ao passar, escuta a minha voz, aproxima-te,
Toca-me, toca o meu corpo com a palma da tua mão,
Não tenhas medo do meu corpo.
WALT WHITMAN (1819 – 1892)
Folhas de Erva (selecção e tradução de José Agostinho Baptista)

quarta-feira, 30 de maio de 2012

PUREZA

Falemos de pureza
Como quem fala de casas, íntimos habitáculos
Que o nosso ser constrói duma pedra branca
Para outra ainda mais branca, mais lívida, mais louvada
Nos altares da arquitectura divina.

E duma pedra justa
Ajustada ao saber que nasce do pensar
Toda a matéria em beleza.
Expor a pureza na dor, na flor enlouquecida
Pela renúncia.

Sentada ao pé de nós
Toda envolta na noite, a pureza destrança
Os seus cabelos sombrios,
Entretendo os soldados mais despertos
Da minha guerra aberta.

Deitada junto a nós
Desvelada no dia, retira uma por uma
As extremosas mãos que lhe afagam os seios
E desarma o olhar na vasta, sepulcral,
Soturna sede do meu sexo.
ARMANDO SILVA CARVALHO (1938)

terça-feira, 29 de maio de 2012

DE TARDE

Lá estavam as pedrinhas, a poeira,
a dificuldade em transpor
o pequeno murinho.

Nada acontecia
e o mar
estava azul.

Apenas o farol,
esquecido agora,
subia por degraus
no meio do mar.

E tu a rir-te,
ao falar.

À sombra
da palmeira,
estavam pessoas
como tu.

Como essa sombra
imensa
e tão nítida,
para ti.

Perfeita.
E tu,
sem querer.
JOSÉ FERREIRA LOPES (1955)
in O Famoso Caderno

segunda-feira, 28 de maio de 2012

(SL.23)

O senhor é meu pastor: nada me falta,
em verdes pastos me concede repousar,
às fontes tranquilas Ele me leva
e repara minhas forças,
a senda dos caminhos justos me aponta
pela honra do seu nome.

Ainda que desça por uma terra de sombra
nenhum mal receio, contigo junto de mim
- como dizer que tua vara e teu cajado me protegem

É meu festim que preparas
à frente dos inimigos
derrames em minha cabeça o perfume,
ergo minha taça transbordante.

Tua bondade e lealdade acompanham
o tempo da minha vida,
minha morada seja a tua morada, Senhor,
por dias que não terminam.

ISRAEL – LIVRO DOS SALMOS
in  Rosa do Mundo – 2001 Poemas para o Futuro
(tradução de José Tolentino Mendonça)

domingo, 27 de maio de 2012

DAS COISAS QUE COMPETEM AOS POETAS

Nas terras onde os sinos andam pelas ruas
há horas surdas sós e sem cuidados
há mar condicionado ao possível verão
e vendem-se manhãs e mães por três ideias
Nas terras onde a música é o fogo de artificio
a camioneta curva a carga sob os plátanos
e à sombra dos lacrimejantes carros
o gato dorme a trepadeira sobe
o soba grita nunca ninguém sabe
a erva cresce a as crianças morrem
O mar aceita chão a mão do sol
Que plural deplorável o da magna agência mogno
E nas tílias há riscos dos vestidos de retintas raparigas
e o dente resistente número quarenta cheira a Pepsodent

RUY BELO (1933 – 1978)
Todos os poemas

sábado, 26 de maio de 2012

UMA DAS FORMAS

UMA das formas de saúde é a doença. Um homem
perfeito, se existisse, seria o ser mais anormal que se
poderia encontrar.
FERNANDO PESSOA (1888 – 1935)
Aforismos e Afins
(edição  e prefácio de Richard Zenith, tradução de Manuela Rocha)

sexta-feira, 25 de maio de 2012

A PERFEITA HARMONIA

Maio é o tempo da perfeita harmonia.
Trajado de negro, mal rompe a luz
O melro canta uma canção de clara alegria.
Nos campos se abraçam as flores e as cores.

O cuco saúda o verão majestoso com galhardia.
Passou o tempo dos dias ruins, a brisa é doçura.
No bosque as árvores de folhas se vestem
E se foram nuas agora são sebe de verde espessura.

O verão vem chegando e corre sem pressa a água no rio.
Manadas ligeiras nas águas mansas a sede saciam.
Na encosta dos montes se espalha o azul do cabelo da urze
E frágil e branca se abre a flor do linho silvestre.

A pequena abelha, de fraco poder, carrega em seus pés
Rica colheita oculta em flores. O gado pasta na erva tenra
Dos verdes prados. Na sua tarefa não há fadiga:
A formiga vai e depois vem para logo ir e nunca parar.

Nos bosques a harpa tange melodias, música de paz
Que acalma a tormenta que o lago agitara.
E o barco balouça de velas dormidas
Envolto na bruma da cor das flores do tempo de Maio.

AUTOR DESCONHECIDO (SÉCULOS IX – X)
in A Perfeita Harmonia – Poemas Celtas da Natureza
(tradução de José Domingos Morais)

quinta-feira, 24 de maio de 2012

NEM COM outrem

NEM COM outrem nem por ti somente
cometas jamais acção de que
envergonhar-te possas.
E acima de tudo respeita-te
a ti próprio.

A justiça em actos e palavras
pratica-la-ás depois.

Pela menor das coisas não te habitues
a decidir-te sem reflectir.

PITÁGORAS ( SÉCULO VI  A.C.)
Versos de Ouro ( tradução de José Blanc de Portugal)

quarta-feira, 23 de maio de 2012

EM ATROZ mágoa

                EM ATROZ mágoa choro todo o dia;
quando ela cresce mais, cresce meu pranto;
a mágoa não, porque chegou a quanto
cruel fortuna ou fado injusto envia.
                A noite chega e penso que encobria
meu mal o dia ou que jamais foi tanto;
dobro o chorar e caio, entretanto,
sem o vigor que em pé me conduzia.
                Ali meus olhos lacrimosos cobre
amargo sono e, bem que o pranto cessa,
a mágoa faz crescer sonho tão triste.
                Corto-o e ele volta; nisto o sol descobre
seu rosto e banho o meu aqui na espessa
chuva com que, cruel Fílis, me aspergiste.

FRANCISCO DE FIGUEROA (1536? – 1617?)
in Antologia da Poesia Espanhola das Origens ao Século XIX
(selecção, organização, tradução, posfácio e notas de José Bento)

terça-feira, 22 de maio de 2012

21.05.2012 (a sete meses do fim)

O dia está chegando ao fim
E dou por mim, enfim
Pensando descansar de uns tempos
Perturbados por nebulosos ventos.
E o que vejo?
Os seres se viram de costas
Num rodopio incessante
De turbulentas voltas.
Se calam no fomento
De um silêncio surdo
Ruidosamente mudo.
Olham sem querer
Desviando logo o desconforto
E assim
Ninguém arriba a bom porto.
Abrem caixas atrás de caixas
Pensando
Diamantes encontrar.
Se perdem no labirinto
Da ética perdida
Aceitando o faminto
que lá se fixa.
Se cobrem de miséria
Ocultando o que à vista está
Não sabendo
que deixam sempre uma pista.
E transformam o mundo
No inferno, esquecendo
Que no fundo
Ele por eles está à espera.

E eu, na minha cabeça
A mão tremendo
Rejubilando pela rixa
Que me pedem
Vou à luta.
Mas, e o meu coração?
O meu coração
Pleno de emoção
Enchendo de comoção
Sofre… e chora.
Carlos Sousa Ramos (1956) – inédito

segunda-feira, 21 de maio de 2012

NÃO TROUXE

NÃO TROUXE palavra alguma
rima qualquer, mosca morta.
Um vento rompeu as longas toalhas,
estilhaços de roupa pelo chão.
Vim de mala fria, passar a noite e o dia
de amanhã, se ainda caibo.

não tem graça nenhuma esta figura
levantada, que me deram.
Dói-me a formiga da manhã, e o grito
da seiva metálica ao cair da noite.
Vou surdomudo, finalmente,
no poema sem gente.

Um dia verás que tenho olhos, boca,
quilos de carne quente.
ANTÓNIO FRANCO ALEXANDRE (1944) - Poemas

domingo, 20 de maio de 2012

OS ESTANDARTES

O vento irmão errante sopra agora bravio
Outubro alteia folhas na poeira do ar
O ouro de Setembro que soía abraçar
Nos ramos ácer verdes e rosa do Estio
Perde-se agora em castanhos e tardio
Faz da vereda uma tapeçaria rara –
E o rei carvalho em suas vestes singular
De brasão garboso e colorido
Agora ao poente é um cepo sem brio.
Se na floresta esplendorosa se escondera
Um castelo fulgente esperando uma rainha
Agora só os mastros despidos de estandartes
Restam, e as muralhas derrubadas e tristes.
Não me lamento, esta dolência não é minha
Pois fazes para mim do Outono Primavera.

EZRA POUND (1885 – 1972) – Fim do Tormento / O Livro de Hilda
(organização, tradução e notas de Filipe Jarro)

sábado, 19 de maio de 2012

O POSTE TELEGRÁFICO

Er’alto, muito alto. Outr’ora, verdejante,
Viveu num pinheiral; foi um pinheiro. Tinha
No tronco erguido ao ar, ramagem, muita pinha,
E a seiva percorria o corpo do gigante.

Se o rapazio da vila, a chilrear, trepava
Pelos seu ramos, ele – avô bonacheirão –
Em vez de se zangar, até os ajudava,
De forma que nenhum vinha para o chão.

Em suma era feliz. Robusto, resistia
Ao vento, ao sol, à chuva, à neve, à tempestade;
Mas como nunca é eterna a f’licidade,
A golpes de machado ele tombou um dia.

Hoje é um poste liso. É esguio, é feio e forte,
Não tem vida nem seiva. Imóvel está ali
À beira de um trigal… Que triste a sua sorte!
A árvore tornou-se em um imenso I…

No topo ele sustenta os fios da longa meada
Que entrelaçando o mundo, ao mundo as novas leva:
<<Paris 8, manhã: - Rostand doente. Neva.>>
<<Belgrado: 22 – A Sérvia revoltada.>>

As notícias banais e as novas d’importância;
Inventos, revol’ções, catástrofes e guerras;
Nos fios circula tudo. Os homens, numa ânsia,
Informam-se e assim ‘stão perto as longes terras.
……………………………………………………………………………..

MÁRIO DE SÁ-CARNEIRO (1890 – 1916) – Poemas Completos
(edição de Fernando Cabral Martins)

sexta-feira, 18 de maio de 2012

ELEGIA XVIII – PROCESSO DO AMOR

Quem quer que ame, se não determina
O correcto e verdadeiro objectivo do amor,
É dos que vai ao mar para ficar enjoado.
O Amor nasce como a cria do urso: se lambemos demais
O nosso amor, e a novas e estranhas formas o forçamos,
Erramos, e de uma massa informe um monstro fazemos.
Não seria um monstro um vitelo que crescesse
Com cara de homem, embora melhor do que a sua?
A perfeição reside na unidade: prefere
Primeiro uma mulher, e depois uma só coisa nela.
Eu, quando avalio o ouro, posso pensar
Na ductilidade, na aplicação,
A salubridade, o engenho,
Da ferrugem, da sujidade, do fogo sempre livre;
Mas se o amar, é porque se tornou,
Pela nossa nova natureza (o Uso), a alma do negócio.
                      Tudo aquilo nas mulheres podemos considerar
(se as mulheres o tivessem) e porém amar apenas uma.
Podem os homens mais ofender as mulheres dizendo
Que as amam por aquilo em que elas não são elas?
Faz a virtude das mulheres? Devo eu esfriar o meu sangue
Até que tanto seja, quanto encontre uma sábia e boa?
[…]

JOHN DONNE (1572 – 1631) – Elegias Amorosas (tradução de Helena Barbas)

quinta-feira, 17 de maio de 2012

UM RIO SECO É COMO A ALMA

Um rio seco é como a alma
De um poeta que não pode escrever, embora conheça
Quase perfeitamente o tema e as mágoas
Da morte ressequida como o estio. Mas o que queria,
E foi outrora um mar puro do mais puro cristal
Recua, torna-se sombrio como arbustos amoniacais, como as
                Folhas antigas do amor,
E abandona o pensamento. Não imagina
Nada que o possa substituir: só no pólo
Da memória oscila uma absurda bússola.
Por isso o rio, entre as lamentáveis árvores sombrias,
É uma agonia de pedras, de horrores submersos
Agora revelados, descoloridos. Por isso existem estas,
Estas pedras, estas ninharias
Quando o rio é uma estrada e a mente um vazio.

MALCOLM LOWRY (1909 – 1957)
As Cantinas e Outros poemas do Álcool e do Mar
(selecção e tradução de José Agostinho Baptista)

quarta-feira, 16 de maio de 2012

SALMO XVII DE ""HERÁCLITO CRISTIANO""

      Os muros da pátria onde vivia,
sendo ante fortes, já desmoronados,
da corrida do tempo vi, cansados
por quem se abate a sua valentia.
      Saí ao campo: vi que o sol bebia
os regatos do gelo desatados,
e do monte lamentosos os gados,
que com sombras furtou a luz ao dia.
      Entrei em casa; vi que, profanada,
da antiga habitação era despojos;
meu cajado, mais curvo e menos forte;
      vencida pelo tempo a minha espada.
Não achei cousa onde pousar os olhos
que não fosse lembrança só da morte.
FRANCISCO DE QUEVEDO (1580 -1645)
in Antologia da Poesia Espanhola do <<Siglo de Oro>> - Barroco
(selecção, tradução, prólogo e notas de José Bento)

terça-feira, 15 de maio de 2012

CORROMPO MAS...

Corrompo mas ilumino. Sou a Estrela Brilhante e da Manhã –
frase, por sinal, que já foi duas vezes aplicada, não sem critério ou
entendimento, a outro que não parece eu.

FERNANDO PESSOA – A Hora do Diabo
(edição de Teresa Rita Lopes)

segunda-feira, 14 de maio de 2012

NÃO PEÇO

NÃO PEÇO que o espaço à minha volta se engrandeça
peço
que a força do sangue na garganta
não a cerre toda: e eu sopre uma canção
biorrítmica
onde se encontre o ar – curta canção
gutural, obscura, rouca:
o sangue coalha numa posta
púrpura, sufoca o movimento da música,
mas peço
que escassa estria ainda se ouça.

HERBERTO HELDER (1930) – Ofício Cantante

domingo, 13 de maio de 2012

A YURTA

A YURTA de uma família bárbara (ano
após ano), sempre entre as ervas.
Estendem no Verão tapetes de feltro
Suspendem no Inverno mantas de pele.
Compreendê-los é bem difícil!
Cavalos pastam cada manhã nas colinas nuas.
Não os faremos sair destas arenosas marcas –
Haverá motivo então para se inclinarem diante das nossas
                mansões.
DUNHUANG (SÉCULOS V – X)
in Poemas Anónimos – Turcos, Mongóis, Chineses e Incertos
(por Gil Carvalho)

sábado, 12 de maio de 2012

HORAS DE SPLEEN

Nesta cidade aborrecida e mona,
passo horas de spleen estiraçado…
sobre um divã, ouvindo um mau teclado,
ou rechinar monótona sanfona.

Lembra-me então a Infanta Magalona,
oiço os miaus de um gato num telhado,
sigo o zumbido de um mosquito alado,
- tomo haschich, morfina, ou beladona.

Mas nisto, rompe o sol a névoa aquática,
vem com capa de asperges ou dalmática,
toda doiro e rubins ensanguentados…

Quero então ser Grão Turco. – E, nas ventoinhas
das torres, empalar os alfacinhas,
- com crepes de chorões gatos pingados!

GOMES LEAL  (1848 – 1921)
Mefistófeles em Lisboa – e outros humorismos poéticos
(edição de José Carlos Seabra Pereira)

sexta-feira, 11 de maio de 2012

AO MEU ABUTRE

      Este abutre voraz de cenho torvo
que me come as entranhas, carniceiro,
e é meu único, constante companheiro,
lavra-me as penas com seu bico curvo.

      No dia em que deva o último sorvo
Beber de meu negro sangue, requeiro
Que me deixeis com ele só fronteiro
Em momento, sem mais ninguém de estorvo.

      Pois quero fazer triunfo de agonia,
Enquanto ele os meus despojos traga,
Surpreender em seus olhos a sombria

olhada ante a ameaça da aziaga
sorte, sem ter em quem satisfazia
a fome atroz que nunca se lhe apaga.
                                                                              Salamanca, 26- X – 1910

MIGUEL DE UNAMUNO (1869 – 1936) – Antologia Poética
(selecção, tradução , prólogo e notas de José Bento)