segunda-feira, 26 de março de 2012

SEMANA de 27.03.2012 a 01.04.2012 (de Terça a Domingo)

27.03

Todos os dias agora acordo com alegria e pena.
Antigamente acordava sem sensação nenhuma: acordava.
Tenho alegria e pena porque perco o que sonho
E posso estar na realidade onde está o que sonho.
Não sei o que hei-de fazer das minhas sensações,
Não sei o que hei-de ser comigo.
Quero que ela me diga qualquer coisa para eu acordar de novo.

Quem ama é diferente de quem é.
É a mesma pessoa sem ninguém.

ALBERO CAEIRO, Poesia (edição de Fernando Cabral Martins e Richard Zenith)

28.03

O GIRASSOL

                               *

Não te surpreendas amigo se nada mais desejo.
Preciso do tempo todo para seguir o sol.

                               *

Se a tua visão ofusca ao fixar o sol
a culpa +e dos teus olhos e não da sua luz.

ANGELUS SILESIUS (1624 – 1667) in A Religião  do Girassol (organização de Jorge Sousa Braga)

29.03

COLÓQUIO DE AMOR

  Se o amor que, meu Deus, me tendes,
é como a Vós eu tenho,
dizei-me: em que me detenho?,
ou Vós, em que vos detendes?
  - Alma, que queres de Mim?
- Oh Deus meu, não mais quer ver-te.
- E que mais temes de ti?
- O que mais temo é perder-te.
  Um alam em Deus escondida,
que terá que desejar
senão amar e mais amar,
e, em amor toda encendida,
tornar-te de novo a amar?
  Só vos pelo um amor pleno:
Deus meu, minha alma vos tenha,
pra fazer um ninho ameno
onde melhor lhe convenha.

SANTA TERESA DE ÁVILA (1515 – 1582) Seta de Fogo 8tradução, prólogo e notas de José Bento)

30.03

VOTO

Ah! primeiras amantes! oaristos!, dourados
Cabelos, o azul dos olhos, carne em flor
De corpos juvenis, e entre o seu odor
As carícias a medo e com espontaneidade!

Ficaram já distantes essas alegrias
E todas as canduras! Rumo à Primavera
Dos remorsos fugiram aos negros Invernos
Das minhas dores, dos meus cansaços e agonias!

E eis-me aqui, agora, só e abatido,
Desesperado e mais frio que os avós mais antigos,
Tão pobre como um órfão sem irmã crescida.

Ó mulher de amor meigo e tão reconfortante,
Suave e pensativa, que nunca se espanta
E nos beija na testa, como uma criança!

PAUL VERLAINE (1844 – 1896) Poemas Saturnianos e Outros(tradução de Fernando Pinto Amaral)

31.03

ESCOLHE. Junto do rei-pantera, quem?
O Inquisidor chacal, o filho
de Temístocles? Usa a imaginação,
podes encontrar a felicidade, não
a procures, experimentá-la é muito
mais difícil. E eu canto, ainda canto,
vá, só vemos máscaras, só lidamos
com fantasmas e ninguém
por mais que queira se livra
de paixões. Só vemos máscaras, só
lidamos…, etc., e no fim, então,
mas só mesmo no fim abrir-se-ia
o livro. Com todo o cuidado,
com uma pinça tiravam-se as letras
das palavras e iam pôr-se num cofre,
todas a seguir umas às outras –
a tengue-nnuca-saeb-ao-certo-es-
da-nâmiafi_poderã-nascer-coisas-
-belas (a gente nunca sabe ao certo
Se da infâmia poderão nascer
coisas belas).
HELDER MOURA PEREIRA (1949) Um Raio de Sol

01.04

PRIMAVERA

Flauta ecoa!
Já não soa.
Ave afoite
Dia e Noite.
Rouxinol
Canta a frol
Cotovia
Co’Alegria
Co’Alegria Alegria p’ra acolher no Ano.
WILLIAM BLAKE (1757 – 1827) Canções de Inocência e de Experiência – Mostrando os Dois Estados Contrários da Alma Humana (tradução de Jorge Vaz de Carvalho)

TALVEZ

TALVEZ pesadas montanhas atravesse
por duros veios, sozinho com um mineral;
estou a tal profundidade, que não há fim que ver pudesse
nem distância: a proximidade é tudo o que acontece
e toda a proximidade é pedra, afinal.

Não sou ainda entendido em sofrimento,
por isso esta grande escuridão me empequenece;
mas se fores Tu: torna-te pesado, aparece:
que a tua inteira mão em mim tenha cumprimento
e eu em ti com o meu relicário sedento.

RAINER MARIA RILKE (1975 – 1926) – O Livro de horas (tradução e apresentação de Maria Teresa dias Furtado)

domingo, 25 de março de 2012

HOJE À NOITE...

HOJE À NOITE avistei sobre a folha de papel
o dragão em celulóide da infância
escuro como o interior polposo das cerejas
antigo como a insónia dos meus trinta e cinco anos

dantes eu conseguia esconder-me nas paisagens
podia beber a humidade aérea do musgo
derramar sangue nos dedos magoados
foi há muito tempo
quando corria pelas ruas sem saber ler nem escrever
o mundo reduzia-se a um berlinde e
as mãos eram pequenas
desvendavam os nocturnos segredos dos pinhais

não quero mais perceber as palavras nem os corpos
deixou de me pertencer o choro longínquo das pedras
prossigo caminho com estes ossos cor de malva
som a som o vegetal silêncio sílaba a sílaba o abandono
desta obra que fica por construir… o receio
de abrir os olhos e as rosas não estarem onde as sonhei
e teu rosto ter desaparecido no fundo do mar

ficou-me esta mão com a sua sombra de terra
sobre o papel branco… como é louca esta mão
tentando aparar a tristeza antiga das lágrimas

AL  BERTO ( 1948 – 1997) o Medo

sábado, 24 de março de 2012

DEIXARAM-ME...

DEIXARAM-ME só
no campo, sob
a chuva fina, só.
Olhavam-me mudos
admirados
os choupos desfolhados sofriam
com a minha dor: dor
de não saber claramente…

E a terra molhada
e os montes negros e altíssimos
calavam, vencidos. Era como se
a maldade de um deus
tivesse num só gesto
petrificado tudo.

E a chuva lavava aquelas pedras.

SANDO PRNNA (1906 – 1977) No Brando Rumor da Vida (tradução de Maria Jorge Vilar de Figueiredo)

sexta-feira, 23 de março de 2012

NÃO HÁ...

Não HÁ jardineiro –
o jardim em liberdade
e por aparar.

SHIKI (1869 – 1902) Imagens Orientais (versão portuguesa de Luísa Freire)

quinta-feira, 22 de março de 2012

O QUE É O misticismo?

O QUE É O misticismo? 
- O que de ser tratado misticamente
(misteriosamente),Religião, Amor, Natureza, Estado –
Tudo o que é eleito se relaciona com o misticismo. Se todos os Homens fossem par de amorosos, seria assim suprimida a diferença entre místico e não-místico.
A teoria de Hemsterhuis sobre o sentido moral. – As suas conjecturas sobre a perfectibilidade deste sentido e a infinita possibilidade do seu uso – Ética filosófica – Ética poética.
A Beleza e a Moralidade são quase como a nluz e o calor no mundo dos espíritos. É através do seu exacto conhecimento – as suas afinidades, as suas analogias – tal com o conhecimento científico do mundo das estrelas - que se poderá estabelecer e desenvolver o conhecimento do mundo dos espíritos.
Será que o misticismo mata a razão?

NOVALIS (1772 – 1801) Fragmentos de Novalis (selecção, tradução e desenhos de Ruy Chafes)

quarta-feira, 21 de março de 2012

QUE NÃO

QUE NÃO há nenhuma tecnologia paradisíaca,
mas com que estranheza se habita o mundo,
olhando de viés o outro lado das linhas,
onde se emaranha o nome profano que se inventa
como se fosse o inominável, movido,
oh inebriamento!
Miraculosamente até
Ao desastre da beleza
HERBERTO HELDER (1930) Ofício Cantante

terça-feira, 20 de março de 2012

ANÁLOGO começo...

Análogo começo,
Uníssono me peço,
Gaia ciência o assomo –
Falha no último tomo.

Onde prolixo ameaço
Paralelo transpasso,
O entreaberto haver
Diagonal a ser.

E interlúdio vernal,
Conquista do fatal,
Onde, veludo, afaga
A última que alaga.

Timbre do vespertino,
Ali, carícia, o hino
Outonou entre preces
Antes que, água, comeces.

FERNANDO PESSOA, Poesia (1918-1930) (edição de Manuela Parreira da Silva, Ana Maria Freitas, Madalena Dine)

segunda-feira, 19 de março de 2012

É VERDADE

É VERDADE que quase andamos como órfãos;
Temos o bem de outrora, mas anda não s sua cultura;
Contudo os jovens, tendo presente a infância.
Não são também estranhos em sua casa.
Vivem triplamente, tal como viveram também
Os primeiros filhos do Céu.
E não foi em vão que foi dada
A fidelidade à nossa alma.
Não apenas a nós, mas a vós também ela guarda,
E junto aos tesouros sagrados, às armas da Palavra,
Que nos deixastes a nós, os menos hábeis,
Ao vos apartardes, ó filhos do Destino,
Ó bons espíritos, aí estais vós também,
Muitas vezes, quando a sagrada nuvem envolve alguém,
Enchemo-nos então de assombro e não o sabemos interpretar.
Vós, porém, temperai-nos de néctar o sopro
E então exultamos muitas vezes ou abate-nos
Um pensamento, mas quando amais alguém em excesso,
Ele não descansa até se tornar um de vós.
Por isso, ó Bondosos, rodeai-me levemente
Para que eu possa ficar, pois muito há ainda a cantar,
Mas agora termina, em pranto de alegria,
Como uma lenda de amor,
O meu canto, e assim também me aconteceu
desde o princípio, com rubor e palidez.
E tudo assim acontece.

FRIEDRICH HOLDERLIN (1770 – 1843)  - Hinos Tardios (tradução e prefácio de Maria Teresa Dias Furtado)

domingo, 18 de março de 2012

RENOVO

Doentia, a primavera expulsou tristemente
O inverno, a estação da arte calma, o lúcido
Inverno, e este meu ser que um sangue morno inunda
De impotência se estira em um bocejo lento.

O meu crânio amolece em crepúsculos brancos
Sob o ferro em tenaz, como um túmulo antigo,
E eu, triste, eis-me a errar pelos campos seguindo
Um sonho belo vago, entre a seiva estuante,

Depois cedo ao odor das árvores, cansado,
Com a face a cavar uma fossa ao meu sonho,
E mordendo os torrões onde crescem lilases,

Aguardo, a abismar-me, o meu tédio a evolar-se…
- Entretanto o Azul, sobre a sebe e o alvor,
Ri das aves em flor ao sol a chilrear.

STÉPHANE MALLARMÉ (1842 – 1898) - Poesias (tradução, prefácio e notas de José Augusto Seabra)

sábado, 17 de março de 2012

QUE AINDA vejo...

QUE AINDA vejo, no tecto dos lares que
abandonei,
um insecto, uma teia, uma constelação,
e lá fora
as vinhas, o melro na anoneira,
os figos quando se desce para o mar,
os cactos floridos nas veredas do pai,
tudo o que serve ao verso magoado, aos seus
declives,
à sua água,
ao sangue que o percorre,

calem os punhais do homicida,
fechem a cor das trevas a sete chaves,
não pronunciem em vão o meu santo nome,
a palavra amigo,
a palavra órfão, maldito, mendigo,
todas as palavras que escrevo,

[…]
JOSÉ AGOSTINHO BAPTISTA (1948) – Esta Voz É Quase o Vento

sexta-feira, 16 de março de 2012

CANTO DÉCIMO SEGUNDO

Se chove parece que a água te lava os ossos,
se vem tempestade chega-te aos ombros
uma enxurrada de gafanhotos que saltam.
A névoa apaga até os pensamentos
e permanecem velas acesas
ardendo no cérebro.

Duas ou três noites atrás a neve cobriu
as estradas e os campos
e pela madrugada eu e o meu irmão
avistámos grandes pegadas
de um estranho animal. Um urso?
Começavam nas primeiras casas da aldeia
e acabavam de repente no meio da praça
como se tivessem voado.

TONINO GUERRA (1920) – O Mel (apresentação e tradução de Mário Rui de Oliveira)