segunda-feira, 30 de abril de 2012

RIO TURTUOSO

Tão longe o tempo pacífico em que passava o palanquim verde.
É estulto ouvir a canção de amor que um fantasma triste canta.
O carro dourado já não traz de volta a beleza que arruinava cidades.
Aonde o muro de jade quebra ainda a ondulação do parque
…Moribundo recordou Hua-t’ing, ouviu o grito das cegonhas… 
…Velho, temendo por uma casa real, chorou junto aos camelos ...
de bronze…
O céu desolado e a terra em discórdia, mesmo a ferida do seu coração
Destruído era mais leve que a dor da Primavera


LI SHANG-YIN  (812? – 858) - Chuva na Primavera e Outros Poemas
(selecção e tradução de José Alberto Oliveira)

domingo, 29 de abril de 2012

POR CIMA DO ATLÂNTICO

É uma pele azul com rugas leves
mais baixa do que as nuvens
algumas das quais, quase
privadas de espessura, são
levadas
por um provável vento

Tão distante
está este branco Atlântico tremente
na sua dúvida entre ser o espelho
do céu fictício ou folha simplesmente

Quando pra ver a água olho de novo
apenas uma enorme nuvem sob
a estreita asa
me recolhe os olhos
GASTÃO CRUZ (1941) – Rua de Portugal

sábado, 28 de abril de 2012

HÁ UMA antiga rosa...

HÁ UMA antiga rosa vermelha, aveludada, em cujo aroma
está presente o mundo da minha infância. Dir-se-ia que o vejo
desdobrar-se em paisagens, figuras humanas, gestos, vozes e
alegrias!
       Ó minha rosa eleita, quando te encontro, nas manhãs de
Abril, incendida cor, entre a verdura das folhas, o Anjo infantil
Que fui, estremece, no seu pequenino túmulo entreaberto;
Acorda, e contempla-me, sorrindo…

TEIXEIRA DE PASCOAES (1877 – 1952) – Senhora da Noite. Verbo Escuro (apresentação de Mário Garcia)

sexta-feira, 27 de abril de 2012

GOMES LEAL

Sagra, sinistro, a alguns o astro baço.
Seus três anéis irreversíveis são
A desgraça, a amargura, a solidão…
Oito luas fatais fitam o espaço.

Este, poeta, Apolo em seu regaço
A Saturno entregou. A plúmblea mão
Lhe ergueu ao alto o aflito coração,
E, erguido, o apertou, sangrando lasso.

Inúteis oito horas da loucura
Quando a cintura tríplice denota
Solidão e desgraça e amargura!

Mas de noite sem fim um rastro brota,
Vestígios de maligna formosura…
É a lua além de Deus, álgida e ignota.

FERNANDO PESSOA (1888 – 1935) Poesia 1918 – 1930 ( edição de Manuela Parreira da Silva, Ana Maria Freitas e Madalena Dine)

quinta-feira, 26 de abril de 2012

Fragmentos de O VELHO CASTELO

1
Homem, estranha encarnação da NATUREZA,
Soberbo, criação efémera, poderei eu olhar
Para ti indiferente e, calmo observar
Tua alegria e dor, na luta do mundo
E teu último e longo cerrar de olhos na morte?
Gosto de olhar os teus modos, de contemplar
Teus lugares, de espreitar teu lar, de encontrar
Nos teus pequenos actos algo grande.
Pois posso em mim descobrir um sentido sublime
De que nasci para pensar, para sentir
E não para olhar em vão o que acontece;
Em momentos de calma e repouso eu senti
Uma nobre comoção e uma desusada alegria
Brotou em meu peito, e também gratidão,
Trazendo aos olhos a surpresa das lágrimas:
Donde vem não sei, mas quando me detenho
Neste todo conjunto e envolvente
Vejo por trás uma enorme força e poder
Cujo rosto é como música, invulgar e plena,
Que eleva meu coração e ultrapassa
Os limites da razão humana; música essa
Que me envolve todo num esquecimento
Das coisas banais e das ideias banais como elas.

ALEXANDRE SEARCHE (FERNANDO PESSOA) (1885 – 1935) – Poesia
(edição e tradução de Luísa Freire)

quarta-feira, 25 de abril de 2012

CARTILHA ABERTA AO MAJOR OTELO SARAIVA DE CARVALHO

O major Otelo Saraiva de Carvalho diz-nos que só aceitará
<<a candidatura por uma verdadeira imposição popular>>.
Raul Rego, in A Lusa, 10.5.76
<<Imposição popular>>,
major  Otelo, jamais!
Nos versos, o pé quebrar
não faz mal, vem nos jornais…

Pé quebrado na política,
mais tempo leva a soldar.7
Aos que lhe fazem requebros,
mande-os altoduquear.

Sou página escrita
e dela guarda memória
o povo, que não se impõe
as estórias à história.

Em vinte e cinco de Abril
sua página foi escrita.
Não há rasura possível.
É uma página limpa.

E uma página linda,
Otelo meu capitão!
Que mais quererá ainda
com a palavra <<imposição>>?

Que venha a vaga de fundo
que o há-de levar ao cume
do tal poder popular?
Presidente dê-me lume,
Vamos mas é charutar…
Alexandre O’Neill (1924 – 1986)
Anos 70 – poemas dispersos
(edição de Maria  Antónia de Oliveira e de Fernando Cabral Martins, prefácio de Vitor silva Tavares, desenhos de Luís Manuel Gaspar)

terça-feira, 24 de abril de 2012

SOB ESTAS...

SOB ESTAS árvores ou aquelas árvores
                Conduzi a dança,
Conduzi a dança, ninfas singelas
                Até ao amplo gozo
Que tomais da vida. Conduzi a dança
E sê quasi humanas
Com o vosso gozo derramado em ritmos
                Em ritmos solenes
Que a vossa alegria torna maliciosos
                Para nossa triste
Vida que não sabe sob as mesmas árvores
                Conduzir a dança.

RICARDO REIS, Poesia (edição de Manuela Parreira da Silva)

segunda-feira, 23 de abril de 2012

XX. VERUS

Verdadeiro sábio e diligente lavrador
Amanhando a terra dos campos do Evangelho,
A fecunda semente que lança à terra
Vem do celeiro da palavra de Cristo.
Ele a semeia com divinos lábios
No ouvido dos prudentes e avisados.
Com a ajuda de Espírito Santo
Sulca o arado o coração dos homens e a sua mente.

In O Grito do Gamo – Poemas celtas de fé e do sagrado (tradução de José domingos Morais)

domingo, 22 de abril de 2012

A INFÂNCIA

O menino cantava; sua mãe, no leito, agonizava,
Extenuada, a sua fronte na sombra pendia;
E sobre ela, a morte numa nuvem vagueava;
E eu ouvia a canção e escutava a agonia.

Tinha cinco anos o menino, e junto à janela,
Um claro som de riso e de jogos se erguia;
E a mãe, ao lado da criança doce e bela
Que todo o dia cantava, toda a noite tossia,

A mãe sob as lajes do claustro foi dormir,
E o menino voltou a cantar…
A dor é um fruto que Deus não faz surgir
Num ramo frágil demais para o suportar.
Paris, Janeiro de 1835

VICTOR HUGO (1802 – 1885) – Poemas (selecção e tradução de Manuela Parreira da Silva)

sábado, 21 de abril de 2012

HÁ NA

HÁ NA intimidade um limiar sagrado,
encantamento e paixão não o podem transpor –
mesmo que no silêncio assustador se fundam
os lábios e o coração se rasgue de amor.

Onde a amizade nada pode nem os anos
da felicidade mais sublime e ardente,
onde a alma é livre, e se torna estranha
à vagarosa volúpia e seu langor lento.

Quem corre para o limiar é louco, e quem
o alcançar é ferido de aflição…
agora compreendes por que já não bate
sob tua mão em concha o meu coração.

ANNA AKHMÁTOVA (1889 – 1966) – Só o Sangue Cheira a Sangue (selecção, introdução e tradução de Nina Guerra e de Filipe Guerra)

sexta-feira, 20 de abril de 2012

LITERATURA

Literatura incrível esta
que a si própria se escreve
Descobri o movimento perpétuo
mas não saí (ó palavras!) do mesmo sítio

Ociosidade de modo que és minha
- Sem ser este, o silêncio que
pode durar 3 quartos de hora
num quarto cheio de homens perguntando

Nessa altura (em 1965) eu estava
metido nisto até ao infinito
Agora trabalho um pouco de fora para fora
Com de vez em quando uma palavra demasiada.
MANUEL ANTÓNIO PINA (1943) – Poesia Reunida

quinta-feira, 19 de abril de 2012

CANTO XX

Tímido soar, quasi tinnula,
Ligur’aoide: <<Si no’us vei, Domna don plus mi cal,
Negus vezer mon bel pensar no val.>>
No meio do florir                  
de duas amendoeiras,
A viola ligada num ilharga;
E outro: <<s’adora>>.
<<Possum ego naturae
non meminisse tuae!>>  Qui son Properzio el Ovídio.

Ramos não são mais viçosos
onde os rebentos da amêndoa
bebem seu vendor de Março.
E naquele ano fui a Freiburg,
E Rennert havia dito: <<Ninguém, não, ninguém
Sabe algo sobre provençal, ou, se existe alguém,
É o velho Lévy.>>
E assim fui para Freiburg,
E as férias estavam começando,
Os estudantes saindo para o verão,
Freiburg im Breisgau,
E tudo limpo, parecendo limpo, depois da Itália.

[…]
EZRA POUND (1885 – 1972) - Os Cantos (tradução e introdução de José Lino Grunewald)

quarta-feira, 18 de abril de 2012

OS COLOMBOS

Outros haverão de ter
O que houvermos de perder.
Outros poderão achar
O que, no nosso encontrar,
Foi achado, ou não achado,
Segundo o destino dado.

Mas o que a eles não toca
É a Magia que evoca
O Longe e faz dele história.
Por isso a sua glória
É justa auréola dada
Por uma luz emprestada.

FERNANDO PESSOA, Mensagem (edição de Fernando Cabral Martins)

terça-feira, 17 de abril de 2012

Atra(c)ção

Atracção
o olhar se perde
o sangue ferve
o ser cresce
em direcção ao desejado.

Atracção
a vontade ficou na calha
o sentimento se atrapalha
o destino se baralha
no percurso do traçado.

E como fica o (nosso) amado
Eu (1956) – in O con(c)luio/r da palavra

segunda-feira, 16 de abril de 2012

PARA TI

Oiço a tua voz
dentro desta sala
tão nua e beijo
os teus olhos
fugidios,
perdidos no sorriso
irónico,
que só tu sabes
porque o tens.

Vejo o teu vulto

esguio
em qualquer pintura,
os ombros,
os teus ombros,
sobretudo,
vejo-os no realismo
destas minhas
mãos
abertas,
vazias,
tão minhas
e tão sós.

Depois, tu,

ao longe,
serás luz
e cor,
serás tu
própria,
envolta já
no tule da noite.

Que me importa?


Se és tu,

tu mesma.

JOSÉ MANUEL FERREIRA LOPES (1955) – in O famoso Caderno

sexta-feira, 13 de abril de 2012

DE 13 (Sexta) A 15 (Domingo) DE ABRIL

Sexta-feira, 13.04.2012

ROMARIZ

Asseguro-vos que às vezes, de uma pessoa
sei que tive medo, e das demais…
Dir-me-eis que não fui ao mar para as salvar.
No oceano preferi ver o meu corpo, por trás da areia
a temeridade, adquirindo o matrimónio; as locuções, toques,
visões, a quietude dita três vezes pulmões de eternidade.

Bordando perto das sestas, ou seja, já em plena miséria
um corpo levante dinâmico, o parágrafo do mar:

Olha para o ventre-aquário! e diz ao vulto no tendão aparecido
agora é ao tempo, deste rosto, com por um outro,
cujo recém reparo se já inverte até ao ventre,
apesar de ungido nu e mudo a cada tempo.

Daqui desço às moradas, para retomar a minha forma humana.

ANTÓNIO POPPE (1968) – Torre de Juan Abad


Sábado, 14.04.2012

PRIMAVERA DAS FLORES NEGRAS

Primavera das flores negras, o que te impede
é a febre dos mortos,
Primavera das flores negras, o que te impede
é um vento contínuo do norte,
uma sepultura é meu Abril,
uma noite visionariamente sombria das flores negras,
são irmãs estranhas que para os campos te impelem,
quando os corvos grasnam
e as colinas bebem borrascas.

Primavera das flores negras, o que te impede
é a febre dos mortos,
Primavera das flores negras, o que te impede
é um vento contínuo do norte,
eu vou dormir, amanhã já
neve e solidão me hão-de cobrir atrás dos teus sapatos…
são irmãs estranhas que para os campos te impelem,
quando os corvos grasnam
e as colinas bebem borrascas.

THOMAS BERNHARD (1931 – 1989) - Na Terra e no Inferno (tradução de José A. Palma Caetano)


Domingo, 15.04.2012

BAIRRO JUDAICO

Em vaso incerto, a claridade

por isso aconselhavas
o caminho mais obscuro
histórias rarefeitas, impossíveis
a daquela mulher
do bairro judaico
que contava a sua vida
por um estranho calendário
de limões e enguias

previa a cada instante
seu próprio desaparecimento
e tem uma simplicidade aterradora
o nenhum peso da luz

tenho tanto medo
da nudez
esse nome final!
MÁRIO RUI DE OLIVEIRA (1973) – Bairro Judaico

quinta-feira, 12 de abril de 2012

COMEÇO

COMEÇO com os santos que cantam no fogo do céu,
Como no azulejo doirado da parede:
Deixem o fogo de Deus, entrem na dança
& façam-se os mestres cantores da minha alma.
Resgatem o meu ouvido, de instinto turvo,
Com um apenas esfumado acesso às coisas,
Um filho das trevas desta idade:
juntem-se ao artífice da eternidade.

M. S. LOURENÇO (1936 – 2009) - O Caminho dos Pisões

quarta-feira, 11 de abril de 2012

A BORBOLETA

Contente mesmo contente
estive na vida muitas vezes
mas nunca como na Alemanha
quando me libertaram
e me pus a olhar uma borboleta
sem vontade de a comer

TONINO GUERRA (1920) Histórias para Uma Noite de Calmaria (tradução de Mário Rui de Oliveira)

terça-feira, 10 de abril de 2012

CRISTOVÃO COLOMBO

O que eu perco de vista hoje ao dirigir-me para leste é o que
                Cristóvão Colombo descobria dirigindo-se para oeste
Foi nestas paragens que ele viu um primeiro pássaro branco
                e preto que o fez ajoelhar e dar graças a Deus
Com tamanha comoção
E improvisar essa oração baudelairiana que está no seu diário
                de bordo
E onde pedir perdão de ter mentido todos os dias aos seus
                companheiros indicando-lhes uma posição falsa
Para que eles não pudessem achar a sua rota.

BLAISE CENDRARS (1887 – 1961) in Mesa de Amigos (versões de poesia por Pedro da Silveira)

segunda-feira, 9 de abril de 2012

ARQUIPÉLAGO

ARQUIPÉLAGO:
ar que o habita, movimento, sal, abalo.
O barulho, o verbo.
Arqueja a folha onde se funda escrito.
Na linha dos trópicos arqueja de calor e velocidades de água:
e nas frias braças da natação a pique, a morte
submarina.
HERBERTO HELDER (1930) – Ofício Cantante

domingo, 8 de abril de 2012

PARA NINGUÉM


                Poemas sobre alguém simultaneamente real e imaginário. Não são mensagens, apenas versos um pouco absurdos na sua inútil clareza. Falam de quem, com quem, desconhece o que imaginei. Inutilidade maior das palavras assim agrupadas, dirigindo-se a quem não as conhecerá nem as poderá entender. Cartas para ninguém, que é alguém sob a verdade das imagens. Ignoro até que ponto é esta a realidade. Verdade, realidade, criei-as ou fui por elas inventado? Num exacto momento elas introduziram factos na minha vida. O poder da visão tornou-me real e levou-me a imaginar que éramos reais: alguém, não existindo com a existência que a minha mente lhe dera, estava diante de mim; e eu estava diante de alguém que via a minha visão e ignorava o que nela era a sua própria realidade.

GASTÃO CRUZ (1941) - Outro Nome, Escassez, As aves