sexta-feira, 30 de novembro de 2012

GUIA-ME

Guia-me a só razão.
Não me deram mais guia.
Alumia-me em vão?
Só ela me alumia.

Tivesse Quem criou
O mundo desejado
Que eu fosse outro que sou,
Ter-me-ia outro criado.

Deu-me olhos de ver.
Olho, vejo, acredito.
como ousarei dizer:
<<Cego, fora eu bendito>>?

Como o olhar, a razão
Deus me deu, para ver
Para além da visão -
Olhar de conhecer.

Se ver é enganar-me,
Pensar um descaminho,
Não sei. Deus os quis dar-me
Por verdade e caminho.

FERNANDO PESSOA 81888 - 1935) - Ficções do Interlúdio
(edição de Fernando Cabral Martins)

quinta-feira, 29 de novembro de 2012

LA MUY HERMOSA

Sê como eles. Chegam pela manhã
gastando os poucos trocos, a vida. Sentam-se
nos sombrios recantos da taberna e entretêm-se
a jogar bilhar ou lançando cartas sebentas sobre
mesas de madeira acariciadas pelos anos.

Fingem sorrir, acendem um cigarro sem que lhes
importe a beleza ou demais feridas. Mais relevantes
são os pequenos dramas de rua, intrigas, mortes e
desavenças - ou a ébria bondade dos amigos. Aprende
a humildade desses velhos de boné ensombrando
as súbitas rugas da face. Para tanto abandono
não são precisas palavras. Os mendigos e a grande confraria
do álcool te dirão o mais certo silêncio. Sepulta
a solidão nos mármores gordurosos de balcões tristes
e escuros e esquece o teu próprio nome, preferindo-lhe
a serenidade de um vagaroso declínio.

Bebe com eles, sabe a cor de seus ternos olhares
praguejantes, e diz às mãos que não passam
de mãos,ao corpo que não passa de corpo.

MANUEL DE FREITAS (1972)-  A Última Porta (Antologia)
(selecção e posfácio de José Miguel Silva)

quarta-feira, 28 de novembro de 2012

DENTRO DA VIDA


Não estamos preparados para nada:
certamente que não para viver
Dentro da vida vamos escolher
o erro certo ou a certeza errada

Que nos redime dessa magoada
agitação do amor em que prazer
nem sempre é o que fica querer
ser o amador e ser a coisa amada?

Porque ninguém nos salva de não ser
também de ser já nada nos resgata
Não estamos preparados para o nada:
certamente que não para morrer

GASTÃO CRUZ (1941) – A Moeda do Tempo

terça-feira, 27 de novembro de 2012

NÃO HAVER...

Não haver deuses é um deus também.

FERNANDO PESSOA - Aforismos e Afins
(edição e prefácio de Reichard Zenith, tradução de  Manuela Rocha)

segunda-feira, 26 de novembro de 2012

SOU EU, NÃO TEMAS.

Sou eu, não temas. Não me ouve quebrar
em ti todos os meus sentidos?
O meu sentir que asas veio a encontrar,
voa, branco, à volta da tua face sem ruídos.
Não vês a minha alma de silêncio vestida
mesmo frente a ti aparecida?
Não amadurece minha oração em flor
no teu olhar como numa árvore de suave odor?

Eu sou o teu sonho, se sonhador fores.
Sou a tua vontade, se velar quiseres
e apodero-me da magnificência sem par
e arredondo-me como um silêncio estelar
sobre a estranha cidade do tempo a passar.

RAINER MARIA RILKE (1875 – 1926) – O Livro de Horas
(tradução e apresentação de Maria Teresa Dias Furtado)

domingo, 25 de novembro de 2012

PASSAGEM

Passagem do Outono entre formas
com o interior dourado. Eu também
na borda do rio observo o gradeamento
gasto, o insecto da ferrugem a rôe-
lo. Mais do que ausente o mundo
dos insecto é oculto, fabuloso e
mortal. Os olhos são feitos de
centelhas. O Outono dá-me pate-
ticamente um tom de cobre.


FIAMA HASSE  PAIS BRANDÃO (1939 - 2007) -  Obra Breve

sábado, 24 de novembro de 2012

SONETO FEITO A SÍLVIA PORQUE DERRAMAVA ALGUMAS LÁGRIMAS DESPEDINDO-SE DE LISARDO

Não sei em qual se vê mais rigorosa
a força desta nossa despedida,
se em mim que sinto já partir a vida,
se em vós, a quem contemplo tão chorosa,

Vós com indícios d'alma piedosa,
mostrais a dor em água convertida,
eu com me ver tão junto da partida,
nem água me deixou dor tão forçosa:

Vós pelo que entendeis do meu sentido,
chorais tendo a causa inda presente,
pagando-me antemão quanto mereço:

Eu logo que me vir de vós partido,
n'alma satisfarei estando ausente
esse amor que nos olhos vos conheço.

FREI BERNARDO DE BRITO (1569-1611) - Sílvia de Lisardo

sexta-feira, 23 de novembro de 2012

PRATICA-TE

Pratica-te como contínua abertura,
o mais atento que custes,
com uma volta sobre ti mesma até eu aparecer no outro lado do rosto,
quando te olhas,
espera que desapareça o ruído em cada palavra,
e agora só a ela se ouça,
e então aumenta tanto quanto possas se escutas
que me aproximo,
a género de abrasadura mulheril,
a cálculo lírico infundido nas lides de ar e fogo,
edoi lelia doura,
que o mêstruo coza e a seda escume,
à luz que nasce da roupa,
e os substantivos perfeitos respirem uns dos outros na têmpera
e frescor da língua indestrutível,
e então estendo por ti acima o melhor do meu braço,
se é que posso fulgurar,
e enquanto crio, cria-me, e cria-te como começo de mim mesmo,
isto: que unas o avulso,
se te puderes mover como o ar que respiro, ó
irrepetível, inenarrável, inerente.

HERBERTO HELDER (1930) – Ofício Cantante

quinta-feira, 22 de novembro de 2012

FALAR POR MEIO DE PAUSAS

I

& da Torre cresceu, puro, pelo ar,
O sino da tarde até ao ouvido.
À volta o silêncio. Foi o avatar
De um novo começo,
Hoje uma funda metamorfose.
As pessoas emergem das malhas
De um solilóquio sem esperança
&, afinal, o seu alcançado silêncio não é
Fruto do medo ou do sacrificium intellectus,

II

Mas antes da alegria de falar
Por meio de pausas. & mesmo
Onde mal havia um nome para te chamar,
Uma língua para as harmonias do Oculto,
Para ela criaste o Templo no Ouvido,
Com um Pórtico cujas colunas tremem.

M. S. LOUIRENÇO (1936 – 2009) – O Caminho dos Pisões

quarta-feira, 21 de novembro de 2012

CHOVIA A BOM CHOVER


Chovia a bom chover e eu fui dar a um aldeia
com poucas luzes. Tinhas uma lareira e estavas
só, pude encarar o lume na tua cara a aproveitar
um estranho para confissões. O pequeno copo
de um trago e outro e outro, para que eu, que nem
sequer sabia o teu nome, ouvisse. Viúvo de tantas
coisas, filho de tanto sentir, mesmo o mais proibido
por quem proibido foi, seria riscado do mapa,
nada mais desejaria. Vi-lhe uma lágrima ao canto
do olho. Seria verdade? seria do álcool? seria
da verdade do álcool? Eu não tinha para onde ir
(chovia a bom chover) e pensei portanto que era
o preço a pagar por cama e pequeno-almoço.
Mas sinceramente não esperava um ataque
de surpresa, ainda por cima condenado ao fracasso.
Pediu-me desculpa e quando me fui deitar
tinha aos pés uma botija de água quente.

HELDER MOURA PEREIRA (1949) - A Tua Cara Não Me É Estranha

terça-feira, 20 de novembro de 2012

A NOITE

Negro está
noite é
a imensidão da
escuridão nos pesa
ao longe , se ouve
o murmúrio
que nos alerta
sopra o vento
nos dando
um momento
de perda de sentido
o tempo se fixa
a vontade se atiça
a lua não o é
a madrugada demora
e eu quero-me ir embora
a mente não descansa
fábrica de impensável pensamento
estadia a qualquer momento
de irreconhecíveis  ideias
e vividos factos
se me agarra a agonia
de uma necessária obrigação
perante a consternação
de uma realidade
que não se quer na via
o desejo desaparece
o infinito está aqui
e a noite que não passa...!
CARLOS SOUSA  RAMOS (inédito)

segunda-feira, 19 de novembro de 2012

SONETO SUPERDESENVOLVIDO


É tão suave ter bons sentimentos
consola tanto a alma de quem os tem
que as boas acções são inesquecíveis momentos
e é um prazer fazer bem

Por isso se no verão se chega a uma esplanada
sabe melhor dar esmola que beber a laranjada
Consola mais viver assim no meio de muitos pobres
que conviver com gente a quem não falta nada

E ao fim de tantos anos a dar do que é seu
independentemente da maneira como se alcançou
ainda por cima se tem lugar garantido no céu
gozo acrescido ao muito que gozou

Teria este (se não tivesse outro sentido)
ser natural de um país subdesenvolvido

RUY BELO (1933 – 1978) – Todos os Poemas

domingo, 18 de novembro de 2012

O TIGRE


Tigre, Tigre, brilho em brasa,
Que a floresta à noite abrasa:
Que olho eterno ou mão podia,
Traçar-te a fera simetria?

Em que longe lerna ou céus,
Ande o fogo de olhos teus?
Em que asas ousa ele ir?
Que mão ousa o fogo asir?

E qual ombro, & qual arte,
Pode os tendões do cor vergar-te?
Quando a bater teu cor se pôs,
Que arroz mão? que pó de arroz?

Qual martelo’ qual o grilo,
Foi teu cér’bro em que fornilho?
Que bigorna? que atra garra,
Teu moral terror amarra?

Quando estrelas dardejaram
E com seu pranto os céus molharam:
Sorriu vendo o feito o obreiro?
Quem fez a ti fez o Cordeiro?

Tigre, Tigre brilho em brasa,
Que a floresta à noite abrasa:
Que olho eterno ou mão podia,
Ousar-te a fera simetria?

WILLIAM BLAKE (1757 – 1827)
Canções de Inocência e de Experiência – Mostrando os Dois Estados Contrários da Alma Humana
(tradução de Jorge Vaz de Carvalho)

sábado, 17 de novembro de 2012

CAP. IX


1.
Então, quem morava em tais Cidades
Sentiu os Nervos tornarem-se Medula,
E os seus duros Ossos padecerem
De súbitas doenças e tormentos,
Em rangidos, espasmos e ardores,
Por todas as praias; então, enfraquecidos,
De súbito se crisparam os Sentidos
Debaixo da negra rede pestilenta;

2.
Os olhos contraídos de névoa
Ignoravam a falsidade dessa teia;
E os laivos de lodo nos seus céus,
Unidos por estreitas percepções,
Pareceriam ter a limpidez do ar; os olhos,
Como se fossem humanos, retraídos,
Contraindo-se em formas de répteis,
Com sete pés ficaram de estatura.

3.
Seis dias se contraiu sua existência,
E ao sétimo dia repousaram
Abençoando-o em esperança vã
E perderam memória da sua vida eterna.

WILLIAM BLAKE (1757 – 1827) – Primeiro Livro de Urizen
( versão e prefácio de João Almeida Flor)

sexta-feira, 16 de novembro de 2012

O MEU PRINCIPAL LUGAR


O meu principal lugar da duração é, porém,
a Fontaine Sainte-Marie,
no bosque de Clamart e Meudon, nos arredores da cidade.
A água  brota numa clareira do bosque
num triângulo de relva formado por caminhos que se cruzam,
tendo na orla um pequeno restaurante com uma esplanada,
uma barraca de pedra pintada de vermelho por fora,
por dentro confortável,
de onde o olhar abrange, no Verão e no Inverno, a fonte,
a clareira e, sobre um dique, um caminho cor de barro,
que vai até ao horizonte.
Se me perguntarem onde é o meu centro do mundo,
eu indicaria, sem dúvida, a Fontaine Sainte-Marie.
E esta é de facto um centro;
porque aí parava eu sempre para descansar
quando seguia pelo bosque
de uma das localidades dos subúrbios, Clamart,
até à próxima, Meudon,
para ir buscar a criança à escola,
e volto agora, sempre que posso,
a fazer esse caminho.
Próximo dali, em Paris, corre o Sena
e correm as águas nas valetas,
mas nada mais em toda a região.
Os poucos regatos que antigamente se viam desaguam
            Debaixo de terra.
[…]
PETER HANDKE (19429 – Poema à Duração
(tradução de José A. Palma Caetano)

quinta-feira, 15 de novembro de 2012

ESTRADA ESPELHADA


Estrada espelhada nos teus olhos velados de água,
Arbustos ao lusco-fusco de um campo alagado,
Não te assustes nem mexas, porque é assim.
Nunca perturbes no bosque do Volga a imobilidade.

ARSENII TARKOVSKII (1907 – 1989) – 8 Ícones
(tradução de Paulo da Costa Domingos)

quarta-feira, 14 de novembro de 2012

ANTES DAS COUSAS


Antes das cousas, já existia Deus, mas só depois dos homens é que ele vive.

TEIXEIRA DE PASCOAES (1877 – 1952) – Senhora da Noite. Verbo escuro
(apresentação de Mário Garcia)

terça-feira, 13 de novembro de 2012

A VISITA

Sangra o meio
onde de permeio
se abrem as feridas
por alienação permitidas.
Gangrena o espaço
contendo um pedaço
de coração desfeito
por compromisso com defeito.
Morre o estático
aglutinado por um sarcástico
que apenas com a sua vontade
assassina a bondade.

Nasce uma sensação
de penitência pela tentação
por uma vida com crédito
que é transformada em descrédito.
Cresce uma transfigurada revolta
alimentada por uma vomitada
desova
que pretende afogar
quem não se quiser espantar.

É dado por concreto um certo
terminus excitante
imobilizador de cabeças usadas
agarradas à possibilidade
de acreditação de fadas.

E assim se desvanece o dia
que é nada no nada da via
de um vida feita em nada.

CARLOS SOUSA RAMOS (12.11.2012)

segunda-feira, 12 de novembro de 2012

A CANÇÃO DO CAMINHO


Quem se atreveria a dirigir o seu rosto
Para este ou aquele lugar?
Não há nada sob o céu tão azul
Que mereça viagem.
Em toda a parte se iniciam caminhos,
E os homens caminham fervorosamente por eles;
Mas aonde quer que levem essas estradas
Podes ter a certeza de que nada há no fim.

ROBERT LOUIS STEVENSON 81850 – 1894) – Poemas
(selecção e tradução de José Agostinho Baptista)

domingo, 11 de novembro de 2012

QUANDO...


Quando a flâmula vinho capta o ocaso
Esparsas chaminés em luz cruzada. Sopram

Vem a crosta da neve sobre o rio
E um universo cobre-se de jade
Flutua o leve bote qual lanterna,
A água fluente coagula-se no frio. E em San Yin
está um povo de lazer.
Gansos selvagens se atiram à beira da areia,
Nuvens se apinham pela fresta da janela
Água ampla; gansos partem com o Outono
Alaridos de gralhas sobre as luzes
dos pescadores,
Move-se luz na linha norte ao céu;
onde os meninos chuçam pedras
à procura de camarões.
Nos mil e setecentos veio Tsing para estes lagos da colina.
Move-se luz na linha sul do céu.

[…]
EZRA POUND (1885 – 1972) – Os Cantos
(tradução e introdução de José Lino Grunewald)

sábado, 10 de novembro de 2012

NA FRONTEIRA


Um poema de uma série

Se armas o arco, que seja o mais forte
Se vais usar flecha, bem mais comprida
Se queres dar no homem, primeiro é o cavalo
Se queres o inimigo primeiro captura o chefe.
Matar gente – tem também limites,
Em qualquer estado se respeitam fronteiras;
Estão os invasores dominados
Para quê massacres.

TU FU [DU FU] (712 – 770)
in Uma Antologia de Poesia Chinesa do Shijing a Lu Xun- segundo milénio antes da era comum – século xx
(por Gil de Carvalho)

sexta-feira, 9 de novembro de 2012

ONAN DOS OUTROS!


Onan dos outros! Ó deus que dás confiança
Só a quem já confia!
E não à morrente ou graça mão que se ansa
Varonil e vazia.

O Virgem Negra, tal me descobriram
Cincoenta anos depois,
Em minha infusão estou. Tombam, deliram
Em vão quantos seguiram

Minha viagem ao nunca ser dois.
No seu andor de luto e de desgraça
O Virgem Negra passa
Maior que todos os sois.

MÁRIO CESARINY (1923 – 2006)
O Virgem Negra

quinta-feira, 8 de novembro de 2012

VITÓRIA DE SAMOTRÁCIA


Não aqui, - além é que existes. Teu voo
demais amplo na extensão dos olhos
de tão curto olhar,
em tempo de pausa acompanhamos.

Mito
anjo
graça
alma de dança
teu corpo era paixão na pedra.

… Param os passos,
espraia-se o mar
onde arrebatas as vestes do vento,
ó virtigem de ser e de estar!

MARIA ÂNGELA ALVIM (1926 – 1959) / Superfície – Toda Poesia
(apresentação de Max de Carvalho)

quarta-feira, 7 de novembro de 2012

SCHIU!


O padre da paróquia de Montelabreve esteve bem até  há quinze dias. De repente meteu-se na cama e morreu com a cabeça encostada aos dois pavões azuis pintados na parede do quarto.
À sobrinha que estava sentada ali ao pé, mesmo um segundo antes de fechar os olhos para sempre, olhou para ela e depois levou o dedo aos lábios e, baixinho como se fosse um sopro, fez: <schiu!>; em suma, dizia-lhe que estivesse calada. Calada a respeito de quê? Estaria já a ouvir outras vozes? Se calhar uma música que lhe vinha lá de cima? Ou queria que ela não dissesse que ele estava a morrer? Ou, se não, um conselho para se calar na vida em geral? Ou era ele que mandava calar-se a si próprio, com o medo que faziam as palavras que se lhe derretiam na boca?
Desse dia em diante a sobrinha compreendeu que dessas coisas não devia falar com ninguém. E de vez em quando volta a olhar para os dois pavões azuis que estão a desvanecer-se da parede.

TONINO GUERRA (1920) – O Livro das Igrejas Abandonadas
(tradução de José Colaço Barreiros)

terça-feira, 6 de novembro de 2012

A QUARTA PORTA

É a solidão
o que o coração procura,
como poderei não
saber o que não sei?

Estou cada vez mais longe de qualquer coisa,
regressarei alguma vez
a tudo o que há-de vir?
O que está a trás de ti

é a tua imagem
que o Futuro persegue.
Este é um lado de tudo
e o outro é o mesmo e o outro.

MANUEL ANTÓNIO PINA - O que está atrás de ti / Aquele que quer morrer
(Todas as Palavras - poesia Reunida)

segunda-feira, 5 de novembro de 2012

OLHAR DENTRO


Olhar dentro do espelho deu-me ideias
do que seria um animal perfeito;
já penso transformar-me, ter maneiras,
asas talvez, ou tromba vigorosa;
dizer adeus aos fios, e adquirir
o encanto popular de um percevejo
ou o hieratismo de uma louva-a-deus.
Ser outro é privilégio de quem tece
na face do destino um transparente
véu, e ao vão casulo
prefere a superfície de uma folha;
com muito estudo, poderei crescer
até figura de homem, se me der
para ser a ti mesmo semelhante.
Perder amigos e vizinhos, ver
à minha volta um assustado espanto,
posso aceitá-lo, se for esse o preço
de uma forma mais fina e elegante;
só me custa deixar, no chão da teia,
a arte de inventar que me conheço.
Melhor seria que mudasses tu; mas,
metaformoso como és, não vais
cair na esparrela de trocar
o teu corpo que sabe a mar e luz
pela velha virtude de um insecto.
Diferentes assim, não vejo como
iremos construir casa comum;
talvez me deixes habitar o tecto,
e te deixe eu morar dentro do espelho.

ANTÓNIO FRANCO ALEXANDRE (1944) – Aracne