domingo, 30 de setembro de 2012

E ELE LHES DISSE:


12        E ele lhes disse: Levantai-me, e lançai-me no mar, e o mar se vos aquietará; porque  sei, que esta grande tempestade por causa de mim vem sobre vós.
13        Mas os varões remavam, para tornar a trazer a nau à seca; mas não podiam: porquanto o mar mais e mais se ia embravecendo contra eles.
14        Entonces clamavam ao Senhor, e diziam: Ah Senhor! Não pereçamos por causa da alma deste varão, e não ponhas sangue inocente sobre nós: porque tu Senhor fizestes, como te agradou.
15        E levantavam a Jonas, e o lançavam no mar: e o mar se aquietou de seu furor.
16        Pelos que estes varões temeram ao Senhor com grande temor: e sacrificavam sacrifícios ao Senhor, e votavam votos.
17        Ordenava pois o Senhor um grande peixe, que tragasse a Jonas, e estava Jonas três dias e três noites nas entranhas do peixe.

in Bíblia Ilustrada – Jonas
(tradução de João Ferreira Annes d’Almeida, apresentação e fixação do texto de José Tolentino Mendonça, ilustrações de Ilda David’)

sábado, 29 de setembro de 2012

O FRACASSO DA VIDA


  Quando a vida recorda a esperança
que nutriu sua juventude entende
que a vida é um engano e empreende
sonhar que foi o que não foi; e avança

  com seus sonhos; contudo, não alcança
o que esperou; a sonhar se defende
e chega enfim Aquela que nos prende
com o laço da última lembrança.

  Para a verdade ver o melhor lume
é o lume que sobe além, do ocaso,
e em ferrugem o verdor ele resume;
  
  lançadeira fatal urde o acaso
da nossa vida na trama o costume;
afinal, qualquer vida é um fracasso.

De Astorga e Zamora, 9-XI-1910
MIGUEL DE UNAMUNO (1869 – 1936) – Antologia Poética
(selacção, tradução, prólogo e notas de José Bento)

sexta-feira, 28 de setembro de 2012

A CIGARRA E AS FORMIGAS...


Não são apenas os cretenses que mentem. Também os  fabulistas.
Na História do senhor de La Fontaine, a formiga responde à cigarra: <<Cantaste, agora dança>>; mas não foi uma formiga que respondeu – foram batalhões, regimentos de formigas.
Depois ficaram por ali, à espera que a cigarra entregasse a alma ao criador, para lhe roerem os ossos.

JOSÉ ALBERTO OLIVEIRA (1952) – Bestiário

quinta-feira, 27 de setembro de 2012

A URANO


Perfume de incenso
para Urano.
Urano, pai de todas as coisas, parte indestrutível do mundo
antigo princípio de todos os seres e fim de todos os seres
ó senhor do mundo, que andas em círculo à volta da terra lugar dos deuses abençoados, tu que te deslocas com o
ardor do rhombo
guarda terrestre e celeste que envolve todas as coisas,
tu que trazes no peito a terrível necessidade da natureza,
e que vês tudo, filho de Cronos, o bem-aventurado,
            demónio escolhido
escuta-me e concede uma vida sã ao novo iniciado.

in Oração do Homem – Uma antologia de tradições espirituais
(apresentação, selecção e tradução de Armando Silva Carvalho e de José Tolentino de Mendonça)

quarta-feira, 26 de setembro de 2012

A SUBLIMAÇÃO: A SUBLIME ACÇÃO


Sem passares pelos líquidos
sais do teu sólido
e corres directamente,
saindo de coma do solo.

Não desces àquela cave
onde estão os oceanos
e os juramentos líquidos.

Irrompes pela atmosfera
volátil e etilizado
como um espelho
a aproximar-se do sol

Sem a secura dos líquidos
que secam pela viveza
como que entram e com que saem
e conferem um outro estado
gasoso, mas não sublime,

tu passas, vivo, e rápido,
embora sobre, vidente, com
um fio de droga apurado
no teu sangue voador.

LUIZA NETO JORGE (1939 – 1989) – Poesia

terça-feira, 25 de setembro de 2012

PODERIA TER ESCRITO...


Poderia ter escrito a tremer de respirares tão longe
Ter escrito com o sangue.
Também poderia ter escrito as visões
Se os olhos divididos em partes não sobrassem
No vazio de ceguez
E luz.
Poderia ter escrito o que sei
Do futuro e de ti
E de ter visto no deserto
O silêncio, o fogo e o dilúvio.
De dormir cheio de sede e poderia
Escrever
O interior do repouso
E ser faúlha onde a morte vive
E a vida rompe.
E poderia ter escrito o meu nome no teu nome
Porque me alimento da tua boca
E na palavra me sustento em ti.

DANIEL FARIA – in Poesia

segunda-feira, 24 de setembro de 2012

A LENHA...


Lenha – e a extracção de pequenos astros,
áscuas. De poro a poro,
os electrões das corolas. Somente no mais escuro
não há nada. No escuro, a carne é um buraco
invisual, e o que arde é o pão
no estômago, e nos brônquios
cortadamente
o ar. E o carbono devora sono a sono a inocência
das imagens. O que toca o órgão mais profundo
do sopro não é música
nem chama: apenas um dedo de mármore entre
as têmporas como
uma bala. E enquanto pontas de fogo marcam
a boca, morremos afogados,
no espelho, no rosto. E se a loucura um instante
levanta as pálpebras.
A grande válvula do corpo.
A escuridão, a terra.

HERBERTO HELDER (1930) – Ofício Cantante

domingo, 23 de setembro de 2012

SONETO XX21 / AMOR E MORTE


Veio uma figura com o séquito da vida
            Que tinha as asas do Amor e usava o seu pendão:
            Bela era a trama, e aí nobremente tecidas,
Oh, face sequestrada pela alma, a tua forma e cor!

Sons desconcertantes. Como os que acordam a Primavera,
            Turbavam-lhe nas dobras; e pelo meu coração o seu poder
Correu sem rastro como a hora imemorável
Em que range o portal escuro do nascimento e tudo é novo.

Mas uma mulher velada acudiu, e apanhou
            A insígnia pela sua haste, para desfraldar e seguir, -
            Depois arrancou uma pena da asa do portador,
E levou-a aos lábios que a não fizeram mexer,
            E disse-me, <Vê, não respiro:
            Eu e este Amor somos um, e eu sou a Morte.>

DANTE GABRIEL ROSSETTI (1828 – 1882)
in Os pré-Rafaelitas – Antologia Poética
(prefácios e tradução de Helena Barbas)

sábado, 22 de setembro de 2012

18 do BRUMÁRIO


Por erros e omissões alcança-se
a idade indiscreta em que a vista
fraqueja e a piedade cansa,
a memória exige licença sem vencimento;
advoga-se prudência como forma
de ignorar os fracassos. Cumpre-se
o destino, a expiação é certa:
o que foi tragédia, voltará em farsa.

JOSÉ ALBERTO OLIVEIRA (1952)
Nada Tão Importante que Não possa Ser Dito

sexta-feira, 21 de setembro de 2012

CANÇÃO DE KAIXIA


Arranca montanhas, a minha força,
Vão-me pouco favoráveis os tempos:
- Não queres ir, meu Ruão.
Cavalo Ruano, não queres ir
- Que posso eu fazer?
Ó Yu, Yu! Que vai ser de ti?

XIANG JI (232 – 202 A.C.)
in Rosa do Mundo – 2001 poemas para o Futuro
(tradução de Gil de Carvalho)

quinta-feira, 20 de setembro de 2012

[À BEIRA DO PRINCÍPIO]


À beira do princípio, do princípio,
o Anjo do Conhecimento cega
para poder ver o início
da sua queda caótica.

Aquilo que o Visionário vê é o que
o vê a ele do alto do Futuro
para onde cai com o conhecimento obscuro de
saber que está no sítio para onde vai.

(O que regressa ao sítio de onde nunca saiu
é o mesmo que nunca lá esteve,
o que sobe a escada e transpõe a porta
que dá para toda a parte).
1976/1977
MANUEL ANTÓNIO PINA (1943) – Poesia Reunida

quarta-feira, 19 de setembro de 2012

DOZE...


Doze signos do céu o Sol percorre,
E, renovado o curso, nasce e morre
Nos horizontes do que contemplamos.
Tudo em nós é o ponto de onde estamos.

Ficções da nossa mesma consciência
Jazemos o instinto e a ciência.
E o sol parado nunca percorreu 
Os doze signos que não há no céu.

FERNANDO PESSOA (1888 – 1935) – Poesia 1918 – 1930
(edição de Manuela Parreira da Silva, Ana Maria Freitas e madalena Dine)

terça-feira, 18 de setembro de 2012

NÃO LEVANTEMOS OS HOMENS

Não levantemos os homens que se sentam á saída
Porque se movem em seus carreiros interiores
Equilibram com dificuldade uma ideia
Qualquer coisa muito nítida, semelhante
A uma folha vazia
E põem ninhos nas árvores para se libertarem
Da gaiola terrível, invisível muitas vezes
Da tão dura
Não nos aproximemos dos homens que põem as mãos nas grades
Que encostam a cabeça aos ferros
Sem outras mãos onde agarrar as mãos
Sem outra cabeça onde encostar o coração
Não lhes toquemos senão com os materiais secretos
Do amor.
Não lhes peçamos para entrar
Porque a sua força é para fora e a sua espera
É a fé inabalável no mistério que inclina
Os homens para dentro
Não os levantemos
Nem nos sentemos ao lado deles. Sentemo-nos
No lado oposto, onde eles podem vir para erguer-nos
A qualquer instante.

DANIEL FARIA – Poesia

segunda-feira, 17 de setembro de 2012

Ó COMO É PRECIOSA


Ó como é preciosa
a virgindade desta virgem
a clausura da sua porta.
Em seu seio
a divindade santa
infundiu calor
para que nela rompa
a flor.

E o filho de Deus
desta secreta passagem
qual aurora sairá.

Eis a doce semente
que seu próprio filho é
na clausura do seu ventre
abriu-nos o paraíso.

E o filho de Deus
desta secreta passagem
qual aurora sairá.

HILDEGARD VON BINGEN (1908 – 1179)
In Rosa do Mundo – 2001 Poemas para o Futuro
(tradução de José Tolentino Mendonça)

domingo, 16 de setembro de 2012

CANTO 1


Chegamos aos confins das águas mais profundas,
Até o território cimeriano,
E cidades povoadas envolvidas
Por um denso nevoeiro, inacessível
Ao cintilar dos raios de sol, nem a E pois com a nau no mar,
Assestamos a quilha contra as vagas
E frente ao mar divino içamos vela
No mastro sobre aquela nave escura,
Levamos as ovelhas a bordo e
Nossos corpos também no pranto aflito,
E ventos vindos pela popa nos
Impeliam adiante, velas cheias,
Por artifício de Circe,
A deusa benecomata.
Assim no barco assentados
Cana do leme sacudida em vento
Então com vela tensa, pelo mar
Fomos até o térmito do dia.
Sol indo ao sono, sombras sobre o oceano,

O luzir das estrelas estendido,
Nem quando torna o olhar do firmamento
Noite, a mais negra, sobre os homens fúnebres.
Refluindo o mar, chegamos ao local
Premeditado por Circe.
[…]
            EZRA POUND (1885 – 1972) – Os Cantos
(tradução e introdução de José Lino Grunewald)

sábado, 15 de setembro de 2012

DA MITOLOGIA


No início havia um deus da noite e da tempestade, um ídolo negro sem olhos, nu e coberto de sangue. Mais tarde, nos tempos da república, havia muitos deuses e suas esposas e crianças, camas que rangiam e raios que explodiam de modo inofensivo. No fim apenas neuróticos supersticiosos traziam nos bolsos pequenas estátuas de sal, representando o deus da ironia. Nessa altura não havia um deus que sobressaísse.

E então vieram os bárbaros. Também eles tinham em grande conta o deus da ironia. Esmagá-lo-iam com os calcanhares e usá-lo-iam para decorar os seus manjares.

ZBIGNIEW  HERBERT (1924 – 1998)
Escolhido Pelas Estrelas – antologia poética
(apresentação e versões de Jorge Sousa Braga)

sexta-feira, 14 de setembro de 2012

CANTO DÉCIMO OITAVO


Quando o melro de Pídio, o sapateiro,
fugiu da gaiola nós esperávamos
no pátio e cada sombra que passava
parecia ele. E no entanto não era.

Até que uma tarde, na sebe de canas,
qualquer coisa negra baloiçava
mirando-nos com uns olhitos que pareciam pontas de navalha.
Então afastámo-nos da janela
E fingimos deslocar nossas cadeiras.

TONINO GUERRA (1920) – O Mel
(apresentação e tradução de Mário Rui de Oliveira)

quinta-feira, 13 de setembro de 2012

Ó VIRTUDE DA SAPIÊNCIA


Ó virtude da Sapiência,
em anel circundaste
envolvendo o mundo,
na única via da vida,
tens três asas:
a primeira voa no alto,
a segunda da terra esvoaça,
a terceira por todos os lados voeja.
Louvor a Ti, ó Sapiência, como é justo.

HILDEGARD VON BINGEN (1098 – 1179) – Flor Brilhante
(introdução e tradução de Joaquim Félix de Carvalho e de José Tolentino Mendonça)

quarta-feira, 12 de setembro de 2012

O VELHO POETA


O seu desejo era que plantassem
um espinheiro num nesga de

terra frente ao mar e ao rio
e que ele florisse nem

que fosse um única vez.
Esse espinheiro protegê-lo-ia

mais do frio que um edredão.
A nesga de terra continua lá

e o mar e o rio e a manhã.
Só o espinheiro e o poeta

é que não.

JORGE SOUSA BRAGA (1957) – Porto de Abrigo

terça-feira, 11 de setembro de 2012

HOMENS QUE TRABALHAM SOB A LÂMPADA


Homens que trabalham sob a lâmpada
Da morte
Que escavam nessa luz para ver quem ilumina
A fonte dos seus dias

Homens muito dobrados pelo pensamento
Que vêm devagar como quem corre
As persianas
Para ver no escuro a primeira nascente

Homens que escavam dia após dia o pensamento
Que trabalham na sombra da copa cerebral
Que podam a pedra da loucura quando esmagam as pupilas
Homens todos brancos que abrem a cabeça
À procura dessa pedra definida

Homens de cabeça aberta exposta ao pensamento
Livre. Que vêm devagar abrir
Um lugar onde amanheça.
Homens que se sentam para ver uma manhã
Que escavam um lugar
Para a saída.
DANIEL FARIA - Poesia

segunda-feira, 10 de setembro de 2012

O ALMA

Sou o alma das visões misteriosas.
Velho da Sombra-mãe que nos criou
E viveram, em mim, todas as cousas.

Um dia, o meu destino me levou
Dessa longínqua aldeia bem amada,
Lá onde o meu espírito encarnou.

Ó minha santa aldeia amortalhada
Na sombra de alto monte, quando a aurora,
Por detrás dele, espreita deslumbrante.

Ando perdido pelo mundo, agora.
Sou crus exposta aos ventos das procelas
E nos meus braços Cristo sangra e chora.

TEIXEIRA DE PASCOAES (1877 - 1952)
Poesia de Teixeira de Pascoaes - Poesia em Verso, Poesia Sem Versos.
O Pensamento Poético. o Ensaio. O Conferencista.
(organização de Mário Cesariny, edição de António Cândido Franco)

domingo, 9 de setembro de 2012

A LUA...



A Lua e as flores ---
deambulando, passaram
quarenta e nove anos.

ISSA KOBAYASHI (1736 – 1827) – Imagens Orientais
(versão portuguesa de Luísa Freire)