quarta-feira, 25 de março de 2015

[cheirava mal]

cheirava mal, a morto, até me purificarem pelo fogo,
e alguém pegou nas cinzas e deitou-as na retrete e puxou o autoclismo,
requiescat in pace,
e eu não descanso em paz nas retretes terrestres,
a água puxaram-na talvez para inspirar o epitáfio,
como quem diz:
aqui vai mais um poeta antigo, já defunto, é certo, mas em vernáculo e
       tudo,
que Deus, ou o equívoco dos peixes, ou a ressaca,
o receba como ambrósia sutilíssima nas profundezas dos esgotos,
merda perpétua,
e fique enfim liberto do peso e agrura do seu nome:
vita nuova para este rouxinol dos desvãos do mundo,
passarão a quem aos poucos foi falhando o sopro
até a noite desfazer o canto,
errático canto e errado no coração da garganta,
canto que o trespassava pela metade das músicas
- e ao toque no autoclismo ascendia a golfada de merda enquanto
       as turvas águas últimas
se misturavam com as águas primeiras

[HERBERTO HELDER (1930 – 2015)]
(de Servidões, in Poemas Completos, porto Editora, 2014)

(publicado a 25.03.2015 no Jornal Público)

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