cheirava mal, a morto, até me
purificarem pelo fogo,
e alguém pegou nas cinzas e
deitou-as na retrete e puxou o autoclismo,
requiescat in pace,
e eu não descanso em paz nas
retretes terrestres,
a água puxaram-na talvez para
inspirar o epitáfio,
como quem diz:
aqui vai mais um poeta antigo, já
defunto, é certo, mas em vernáculo e
tudo,
que
Deus, ou o equívoco dos peixes, ou a ressaca,
o
receba como ambrósia sutilíssima nas profundezas dos esgotos,
merda
perpétua,
e
fique enfim liberto do peso e agrura do seu nome:
vita
nuova para este rouxinol dos desvãos do mundo,
passarão
a quem aos poucos foi falhando o sopro
até
a noite desfazer o canto,
errático
canto e errado no coração da garganta,
canto
que o trespassava pela metade das músicas
-
e ao toque no autoclismo ascendia a golfada de merda enquanto
as turvas águas últimas
se
misturavam com as águas primeiras
[HERBERTO HELDER (1930 – 2015)]
(de Servidões, in Poemas Completos, porto Editora, 2014)
(publicado a 25.03.2015
no Jornal Público)
Sem comentários:
Enviar um comentário