domingo, 5 de agosto de 2012

SAM JOÃO

Ó bravas serpentes que em serras andais
ó dragos ferozes que estais nos desertos
ouvi os secretos que estão encobertos
e vós, dormedários, também nam durmais.
E tu mui serena
formosa ave Fénix, que tanto sem pena
a ti mesma matas por tua vontade,
vai ver o Fénix da Santa Trindade,
filho da Fénix gratia plena,
que está na cidade.

E tu mui soberbo lobo poderoso,
que trazes as unhas cruéis e tengidas
no sangue d’ovelhas de pouco paridas,
aprende de Cristo cordeiro amoroso.
E vós, pomba brava,
que voais isenta, soberba, alterada,
em essas montanhas viveis branda vida,
tomai por espelho a pomba escolhida,
a pomba mui mansa, a pomba calçada,
de sol é vestida.

E tu, vil raposa, que vives d’engano
E matas quem amas sem nenhum temor,
aprende de Cristo que só por amor
ofrece à morte seu corpo humano.
Tu, águia real,
que vences os raios do sol natural
com tua vista per graça divina,
guarda, nam te cegue o sol da rapina,
pois te alumia a luz divinal
com sua doutrina.

GIL VICENTE (1465? – 1536?) – Breve Sumário da História de Deus
(pinturas de Ilda David’, edição de José Camões e Helena Reis da Silva, posfácio de José Augusto Cardoso Bernardes)

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